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16 de Outubro de 2012 às 00:01

Orçamento para 2013: um espelho quebrado

Os desastrosos últimos anos da União Europeia, onde releva com grande destaque o confisco dos poderes de soberania financeira nacional, a benefício de entidades não legitimadas politicamente, provocaram as primeiras fissuras no espelho.

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Nos já longos anos que levo a ensinar Finanças Públicas, tenho sempre defendido que o Orçamento do Estado é o melhor espelho de uma Nação, nele se reflectindo as nossas escolhas colectivas, o que nos permite perceber, num relance, a parcela do nosso rendimento que estamos dispostos a entregar ao Estado e como entendemos que se deve repartir esse esforço financeiro, bem como as prioridades que fixamos para a nossa vida comunitária, seleccionando as áreas que vamos privilegiar nas políticas públicas.

Todos os anos, através dos nossos representantes, renovamos o contrato social que está na base da nossa existência enquanto comunidade, aprovando o Orçamento. Quaisquer que sejam as dúvidas que as últimas décadas de cinismo político e contestação da racionalidade das escolhas financeiras tenham vindo a introduzir, a escolha parlamentar continua a ser a melhor forma de expressar a "inteligência média de uma colectividade", como escrevia, cem anos, atrás o grande financeiro italiano Pantaleoni.

Naturalmente que o antiparlamentarismo, cujas raízes em Portugal sobreviveram muito além da queda da ditadura, tem tentado sempre esvaziar esses poderes e há que reconhecer que o modo como a generalidade dos parlamentares actua, votando exclusivamente em consonância com as instruções das direcções partidárias, fornece um terreno fértil para o crescimento dessas raízes.

Os desastrosos últimos anos da União Europeia, onde releva com grande destaque o confisco dos poderes de soberania financeira nacional, a benefício de entidades não legitimadas politicamente, provocaram as primeiras fissuras no espelho. Recentemente, o Presidente da Comissão comunicou à Europa e a Portugal que a manobra de política orçamental para 2013 já tinha sido aprovada em Bruxelas e – com espanto – leu-se e ouviu-se, uns dias depois, o mesmo Presidente dizer que os governos estariam a faltar à verdade aos cidadãos, ao afirmar que as medidas económicas seriam determinadas por Bruxelas quando são, na realidade, decididas pelos executivos nacionais.

Eu, que me confesso profundamente supersticioso, comecei a inquietar-me com as sucessivas rachas no espelho, recordando a conhecida previsão dos sete anos de azar, que remonta a velhas tradições gregas e romanas. As condições para o espelho quebrar ainda não estavam, no entanto, totalmente reunidas. Apesar de tudo, mesmo a aliança tecnocrata-ditatorial mantém as formas: o Orçamento passará pela Assembleia da República. A revelação das linhas gerais cria-me, no entanto, a profunda convicção de que o espelho efectivamente se quebrou.

À semelhança, creio, de muitos outros portugueses, partilho da consciência fiscal do juiz Wendell Holmes, quando declarava: "gosto de pagar impostos. Com eles compro civilização". Por isso pagamos impostos, tantas vezes próximo da taxas confiscatórias, supressoras da propriedade e da liberdade individual, porque olhamos para o destino que o Estado dá aos nossos tributos e vemos que eles permitem assegurar saúde para todos, ensino, investigação científica, a manutenção da máquina administrativa, da justiça, da certeza, da segurança, criando uma rede de protecção contra os infortúnios, que garante, simultaneamente, um mínimo de protecção e uma nação coesa, em torno de uma concepção do que é uma sociedade decente.

Com a sua espantosa ironia, Eça de Queiroz interrogava-se, a propósito da situação em Évora: Por que motivo, em virtude de que protecção, de que garantia, se pagam nesta cidade impostos? É porventura pela regalia de poder pisar as calçadas e receber a luz do sol? É pela garantia de poder semear pela liberdade de poder viver? O Estado não tem nesta cidade o direito de receber o preço dos serviços que não presta. Ele não protege, não defende, não policia; não cura da higiene, não faz nada, e hão-de os contribuintes fazer o sacrifício do seu sustento para terem o prazer de ser desprezados? .

A mesma sensação me assalta, nestes dias penosos que vivemos, em que percebo que, de facto, o espelho se quebrou. Terá o Governo consciência disso e, mais ainda, saberá que, na origem grega daquela superstição, admirar-se num espelho quebrado é o pior de tudo, porque significa quebrar a própria alma?

Mas, o mais alarmante é que, mesmo para quem não seja supersticioso, por trás de um espelho quebrado apenas há cansaço. E o cansaço tudo anula... A vontade e a energia regeneradoras... Não há espelho que possa ser reparado.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Presidente do Instituto Europeu e do IDEFF

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