Opinião
Duas visões do Mundo
A Igreja não se envolve em política mas não esquece os seus filhos e todos os outros que dela necessitam. A todos nós desafia-nos a saber de que lado destas duas visões do Mundo estamos.
Num ano repleto de más notícias para a generalidade das pessoas e em que o grau de violência e instabilidade política e social atingiu níveis alarmantes, gerou-se um enorme consenso sobre a extraordinária figura do Papa Francisco, que trouxe um novo ânimo a uma Igreja Católica abalada por sucessivos escândalos e que aparentava ser incapaz de se reformar.
À semelhança do que cinquenta anos atrás fez o Papa João XXIII, Francisco I renovou a esperança de todos os católicos ao proclamar a alegria do evangelho e a vitalidade da mensagem de Cristo. Duas iniciativas ficam a marcar o fulgurante início de papado, a exortação evangélica "Evangelii Gaudium" e o inquérito lançado a toda a Igreja Católica sobre alguns temas que não tinham merecido até agora reflexão interna aprofundada e, ainda menos, democratizada.
Mas não é menos importante a forma como o Papa soube atrair os laicos para um diálogo há muito interrompido, proclamando que Deus não é apenas dos católicos mas antes de todos os cidadãos, empenhando-se num diálogo que teve como interlocutor um conhecido intelectual e jornalista italiano, Eugenio Scalfari.
Não por acaso, por todo o Mundo, o Sumo Pontífice foi eleito pelas publicações de referência como a personalidade do ano. O "Financial Times", por exemplo, salientou a humildade pessoal e a recusa da ostentação, a integridade pessoal de quem se recusa a julgar os homossexuais, a capacidade para lançar um programa de renovação da Igreja Católica e a sua posição em relação ao sistema económico baseado na centralidade do dinheiro.
Toca-me, sobretudo, na acção papal a forma como Francisco I colocou a questão dos refugiados e imigrantes, a quem tão poucos dão atenção. A sua viagem à Ilha de Lampedusa foi um primeiro sinal da sua determinação em trazer este assunto para o centro das atenções. Recordo as suas palavras: "Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de «padecer com»: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar".
Mas este foi um tema em que o Santo Padre se não ficou por aqui. Na mensagem de Natal, depois de se ocupar de toda uma série de violentos conflitos e do desinteresse com que são acompanhados implorou, mais uma vez, ajuda para os refugiados e, já depois disso, recordou que "José, Maria e Jesus experimentaram a situação dramática dos refugiados, uma impressão de medo, de incerteza e de privações".
Da União Europeia e de alguns dos seus mais importantes Estados chega-nos, no entanto, uma mensagem muito diferente, consubstanciada na passividade e omissão, já de si bastante graves, mas sobretudo na ameaça ou concretização de medidas que, poucos anos atrás, seriam propostas por grupúsculos xenófobos e racistas, mas são, agora, assumidos por governos livremente eleitos em Estados, correntemente designados por Estados de Direito.
Ironicamente, numa União que nasceu sobre a promessa de solidariedade e de cooperação, aquilo que se assiste é a uma tentativa de elevar o estigma do estrangeiro, a lei e a repressão a práticas necessárias. E, se estas medidas são anunciadas ou postas em acção inicialmente por governos de direita, espanta ver a esquerda, herdeira das grandes causas sociais e humanitárias, cair cada vez mais nessa mesma orientação. Em França, o terrível episódio da expulsão em condições totalmente desumanas de uma jovem cigana romena integrada numa comunidade liceal foi a face mais visível de uma sinistra campanha conduzida por um Governo e um ministro, Manuel Valls, socialista e ironicamente filho de emigrantes.
Da Inglaterra chegam ecos ainda mais terríveis, com o silêncio cúmplice dos trabalhistas, com a aprovação de leis anti-emigração e a restrição até das liberdades de circulação, um dos pilares da União, em relação a cidadãos da própria União.
Duas visões do Mundo confrontam-se aqui de uma forma especialmente nítida: a do Papa Francisco e a dos líderes europeus. O primeiro a apelar para as consciências individuais para auxiliar os mais desfavorecidos, a União Europeia, pretextando com a opinião pública, a fomentar medidas que apenas farão crescer o ódio e a divisão no Mundo e reduzirão cada vez mais o papel de uma Europa, a quem restava pouco poder na cena internacional, mas que podia ainda, pelo seu exemplo de tolerância e humanidade, fazer a diferença.
É disso que a União se desinteressa, não percebendo os demónios que acorda dentro de si nem a contribuição que dá para que ninguém se interesse por ela, fora das suas fronteiras, cada vez mais bem guardadas, mas cada vez menos capazes de se expandirem.
O Papa Francisco seguramente rezará por esses líderes, mas será que apesar da sua extraordinária fé terá esperança em que uma classe política medrosa e tacticista possa inverter caminho? Ou será que a mensagem do Papa sobre a necessidade de mudar a sociedade envolve também a necessidade de mudar esses líderes? A Igreja não se envolve em política, mas não esquece os seus filhos e todos os outros que dela necessitam.
A todos nós desafia-nos a saber de que lado destas duas visões do Mundo estamos.
Presidente do IDEFF
Professor Catedrático da FDL