Opinião
Um Papa em luta por um mundo mais justo
Mesmo que Davos já não seja o que era e vozes ortodoxas por lá apareçam, a singeleza e pureza deste apelo é, seguramente, uma novidade. Conseguirá Francisco fazer o que nem políticos nem economistas conseguiram?
Dirigindo-se aos crentes na bela exortação evangélica, Evangelli Gaudium, o Papa Francisco começa por lembrar que "o grande risco do mundo actual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem", numa caracterização que ecoa seguramente muito para além dos meios católicos.
A enérgica tentativa de Sua Santidade para recolocar a Igreja Católica no mundo e retirar do Evangelho os ensinamentos e instrumentos para lidar com os desafios dos nossos dias é tanto mais importante quanto se verifica num momento em que a crise das lideranças políticas e o desinteresse gritante que demonstram (com raras excepções), no combate à injustiça social e em honrar o que constituiu a herança de democratas-cristãos e sociais-democratas, faz com que este legado subsista apenas como bandeira de formações de extrema esquerda.
Só que desta vez é o Papa que nos alerta para que "assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem-abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída ".
E se toda a mensagem económica do Papa merece uma reflexão aprofundada, pela riqueza do seu conteúdo, a forma como adverte para as consequências das políticas económicas dominantes é especialmente incisiva: "Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa perante os interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta".
Aqui chegados convirá não esquecer que este é o Papa que, pouco depois de entronizado, se deslocou a Lampedusa para "chorar os mortos que ninguém chora" e qualificar de vergonha a política de imigração e asilo, lembrando que José, Maria e Jesus foram, também eles, refugiados. Este é também o Papa que disse em Cagliari que, "quando não há trabalho não há dignidade".
É tempo, então, de perguntar, decorridos quase três meses sobre a publicação da Exortação, quais foram os seus efeitos práticos – e isso será amplamente feito numa sessão na Faculdade de Direito, no dia 6, organizada pelo IDEFF e que conta, designadamente com a presença de Dom Manuel Clemente.
Um ponto parece certo: o debate está aberto e nele se podem encontrar três posições fundamentais: as dos que entendem que se trata do prolongamento da tradicional doutrina social da Igreja; os que nela vêm a difícil compatibilização entre o catolicismo e o capitalismo e as dos que nela encontram uma perversa conversão do Papa ao socialismo.
Se a primeira dessas posições é apoiada na concepção de Max Weber, que liga a ética protestante ao desenvolvimento do capitalismo e pode, ainda, evocar a forma como durante séculos a Igreja Católica se opôs ao fenómeno do crédito, condenando ao Inferno os usurários, que vendiam um bem – o tempo – que só a Deus pertencia, nem por isso se pode ignorar que foram as Ordens Monásticas que criaram, ainda na Idade Média, os mecanismos que permitiram o pleno desenvolvimento do capitalismo, como assinalou João Paulo II na "Centessimus Annus".
Para outros, como Louis Woodhill, escrevendo na "Forbes", a Igreja não deve apelar à redistribuição destruidora da riqueza, recordando que Jesus sempre defendeu a caridade individual e que essa é muito mais eficaz que a redistribuição pública.
Andam, porventura, mais perto da verdade aqueles que inserem a Exortação na linha da doutrina social da Igreja e recordam que até o insuspeito João Paulo II, escrevia em 1987 que "... a doutrina social da Igreja adoptava uma atitude crítica quer em relação ao capitalismo liberal quer ao colectivismo marxista".
O prático extermínio do colectivismo marxista deixou seguramente a Igreja com outra liberdade para analisar as questões sociais, mas o que mais impressiona na mensagem de Francisco I é o sentido de urgência que ele transmite e que recorda uma frase célebre de uma poetisa católica, Sofia Mello Breyner Andersen, "vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar".
O impacto da mensagem económica do Papa foi tão forte que até os organizadores do Fórum de Davos, num gesto inédito, o convidaram a juntar-se a uma reunião onde estão presentes as maiores fortunas do Mundo e onde o Chefe da Igreja Católica seria uma presença inovadora. Francisco não sentiu o apelo de Lampedusa ou da Sardenha, mas nem por isso deixou de se dirigir àqueles que mandam nas finanças mundiais para lhes pedir que garantissem que a humanidade é servida pela riqueza e não a serve e pedir-lhes mecanismos e processos para uma melhor distribuição da riqueza e de promoção dos pobres.
Mesmo que Davos já não seja o que era e vozes ortodoxas por lá apareçam, a singeleza e pureza deste apelo é, seguramente, uma novidade. Conseguirá Francisco fazer o que nem políticos nem economistas conseguiram?
Presidente do IDEFF. Professor Catedrático da FDL