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09 de Abril de 2014 às 21:00

O Porto tem sorte

Em muitas outras declarações, Dom Manuel Clemente expressou claramente o seu empenho na crise, ao recordar que "a presente crise deflagrou pelas finanças, mas não se resolve sem a economia e esta liga-se necessariamente à política, ou seja, à vontade democrática dos povos que constituem a Europa".

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Vem de há décadas a verificação de que Portugal é aquilo que o grande sociólogo Adérito Sedas Nunes chamou de uma sociedade dualista em evolução, caracterizada pela coexistência de zonas de riqueza e modernidade com outras de pobreza e exclusão. O 25 de Abril, o processo de descentralização, que implicou um reforço impressionante dos meios de comunicação e uma capacitação em infra-estruturas como não havia memória, não foram capazes de inverter esta situação e, particularmente, de obstar à divergência entre o litoral e o interior.

 

Mas, mesmo nesse litoral rico, a rivalidade ou ignorância recíproca entre Lisboa e Porto constitui um aspecto marcante. À arrogância da Lisboa do Estado Novo, respondeu a arrogância do Porto no período em que a iniciativa privada começou a prevalecer sobre as indústrias nacionalizadas, situadas essencialmente no Sul. Concluída a primeira fase das privatizações, Lisboa voltou a assumir-se como o centro de decisão e riqueza, que o sucesso de alguns empresários nortenhos em pouco consegue contrariar. Em breve, com o desaparecimento do poder económico nacional, talvez a questão se torne menos relevante.

 

A recessão económica parece - essa sim - ter atingido por igual o Norte e o Sul e, talvez que o Interior, mais conservador socialmente e solidário nas suas decisões, tenha passado melhor estes tempos.

 

Mas, neste domingo à noite, acabadas de ler as notícias, sinto-me tentado a pensar que o Porto tem sorte, porque, se por vezes se sentiu a falta de líderes regionais à altura, isso parece ser cada vez menos verdade, mas, sobretudo porque, se olharmos as figuras que ocuparam a Diocese do Porto, não podemos deixar de admirar a frontalidade, inteligência, coragem e acompanhamento daquilo que há de mais profundo na doutrina social da Igreja.

 

Neste domingo, o novo Bispo do Porto fez a entrada solene na Catedral e não hesitou em ecoar a mensagem que o Papa Francisco  vem espalhando sobre a necessidade de uma nova política económica, ao afirmar que devemos ser  "ousados, criativos e decididos sempre, mas sobretudo quando e onde estiverem em causa os frágeis, os pobres e os que sofrem. Esses devem ser os primeiros porque os pobres não podem esperar!"

 

Quantos de nós não gostaríamos que esse espírito iluminasse a acção de toda a Igreja Católica mas, sobretudo, daqueles cujas decisões políticas vão decidir do futuro dos pobres e dos ricos e nem sempre é seguro que a prioridade da sua acção vá para os primeiros.

 

Naturalmente que a acção do Estado não desobriga a Igreja Católica, nem no geral a sociedade civil e com facilidade podemos acompanhar a afirmação de Dom António Francisco dos Santos sobre a "grande quantidade e geral qualidade" das mais variadas instituições da cidade " ... que se revela na grande capacidade de criar, empreender e inovar, com que em tanto lado se tem conseguido resistir e até superar as grandes dificuldades que (...) atingem nesta crise por demais arrastada".

 

Dom António segue-se a Dom Manuel Clemente que  como salientou o júri do Prémio Pessoa em 2009, representou "em tempos difíceis como os que vivemos, uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo", uma vez que "a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, do combate à exclusão e da intervenção social da Igreja".

 

Ainda antes de sair do Porto, numa conferência de imprensa, no fim da missa de Pentecostes, o já nomeado  patriarca de Lisboa deixou um aviso aos "decisores nacionais e internacionais" para que sejam "solidários e pedagógicos", pois a crise só será superada com um "esforço conjunto".

 

Em muitas outras declarações Dom Manuel Clemente expressou claramente o seu empenho na crise, ao recordar que "a presente crise deflagrou pelas finanças, mas não se resolve sem a economia e esta liga-se necessariamente à política, ou seja, à vontade democrática dos povos que constituem a Europa ou que "os bispos nunca foram ouvidos [pela 'troika'], mas era bom que houvesse essa preocupação, porque o País vai muito para além do Governo."

 

E como esquecer as dúvidas que expôs em Novembro de 2012 sobre a existência de justiça na repartição de sacrifícios na sociedade ou quando desabafou: "Não apertem demais porque nós [portugueses] precisamos de respirar". O facto de o ouvirmos menos agora nada significa, como pudemos comprovar pela sua intervenção no IDEFF sobre a doutrina económica e social do Papa Francisco.

 

Mas, se a herança dos patriarcas de Lisboa ficou marcada pelo longo mandato do Cardeal Cerejeira e a sua cumplicidade com o salazarismo, também aí o destino do Porto foi bem diferente. Porque, ainda nos anos cinquenta, Dom António Ferreira Gomes se tornou a figura de referência para todos os católicos ao questionar a política e a gestão financeira do País.

 

A leitura da sua carta a Salazar que o levou a um prolongado exílio de dez anos, em que continuou a crescer em sabedoria e humanidade, é ainda hoje exemplar.

 

Em tempos de ditadura financeira, imposta pela necessidade de equilíbrio das contas, vale bem a pena recordar quanto escreveu Dom António Ferreira Gomes a propósito da política de austeridade da altura:

 

"... Um financismo à 'outrance' (operando aliás pela compressão dos preços, contra o aumento da circulação fiduciária), invertido num economismo despótico, actuando dentro duma socialidade cujos erros venho procurando apontar, não podia deixar de resultar e resultou efectivamente (com excepção do período inicial dos abonos de família) em benefício dos grandes contra os pequenos e finalmente na opressão dos pobres."

 

Não esqueço as grandes possibilidades de trabalho que o Estado e as grandes empresas criaram; mas isso porém não impediu que se estabelecesse e fechasse o que podemos chamar o ciclo da miséria.

 

Falando assim, eu não quero tomar partido pelos excessos do socialismo ou pelo descalabro financeiro; apenas não posso deixar de pensar que na acção política, como em tudo e mais que em tudo, a virtude está no meio e que, se o equilíbrio financeiro é óptimo, nunca deve deixar de estar ao serviço do homem, porque aliás "corruptio optimi péssima". Não perco de vista as dificuldades, ansiedades e perigos que as más finanças oferecem por esse mundo; mas parece-me que, através de tudo, se procura salvar um princípio verdadeiro: que as finanças são o primeiro servidor e não podem ser, senão excepcional e transitoriamente, o senhor da Nação. (Como o dinheiro, para o homem indivíduo...).

 

Olhando a Igreja do Porto - e esperamos bem que toda a Igreja Portuguesa -, por todas as razões só podemos esperar que ela encare os problemas sociais com a mesma determinação com que o faz o Papa Francisco.

 

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Presidente do Instituto de Direito Económico-Financeiro e Fiscal da mesma faculdade

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