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22 de Abril de 2009 às 12:02

O sonho chinês

Foi há cerca de três ou quatro anos que para mim se tornou bem visível o número de africanos em Cantão. Lembro-me de, então, num sinal de trânsito perto do Hotel Garden, ter visto do outro lado da rua a massa de...

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Foi há cerca de três ou quatro anos que para mim se tornou bem visível o número de africanos em Cantão. Lembro-me de, então, num sinal de trânsito perto do Hotel Garden, ter visto do outro lado da rua a massa de gente habitual, mas desta vez com cerca de 10% de africanos.

Comentei o facto com Yi Lin que me acompanhava e ela explicou-me que eram de facto muitos, várias dezenas de milhar, e que ocupavam uma zona de cerca de 10 quilómetros quadrados perto de Hongqiao conhecida entre os locais por "Cidade Chocolate". É ali que fica o mercado de Canaan, onde se transaccionam todo o tipo de mercadorias desde têxteis a electrónica.

Segundo as estatísticas chinesas os comerciantes africanos começaram a chegar em números consideráveis a partir de 2003 e desde então crescem a uma taxa anual de 30 ou 40%. Canaan não é o paraíso como a evocação bíblica parece indicar, mas é quase o paraíso.

Em África, mais de 50 países anseiam pelos produtos chineses, artigos produzidos em excesso para substituir eventuais devoluções de clientes ocidentais, artigos que tornam possíveis muitos sonhos de consumo. Não é pois de admirar que em muitas cidades de África o apelo "Para a China!" vá substituindo o desejo da fuga para a Europa ou para a América. É a terra de todas as possibilidades.

Jesse senta-se na minha frente e diz-me isso mesmo: é a terra de todas as possibilidades. Jesse brinca com o pesado fio de ouro à volta do pescoço e mostra algum desconforto perante a minha curiosidade. Recentemente, afirma, já viu tantos artigos e documentários sobre o mercado de Canaan que desconfia do que os ocidentais quererão saber.

Mas Yi Lin é sua professora no mestrado e Jesse não quer desiludi-la. Ainda assim chegou atrasado, mais de uma hora. Tinha de lavar o carro, explicou. Yi Lin não percebe como se pode invocar essa razão num encontro marcado há tanto tempo, mas acredita no que diz um antigo texto histórico chinês: "quem não é da nossa raça pensará seguramente de um modo diferente" e assim esperámos até o dia se dissolver na noite.

Jesse saiu da Tanzânia há mais de doze anos, ainda a tempo de apanhar um inverno terrível em Nanjing. Tinha uma bolsa do governo chinês para tirar uma licenciatura em computadores o que o obrigou desde logo a aprender mandarim, que hoje fala na perfeição.

Findo o curso, Jesse tornou-se estudante profissional para poder continuar na China, uma estratégia utilizada por muitos para prolongarem a sua estada no país. Foi assim que veio para Cantão onde fez um mestrado em computadores e agora este novo mestrado em gestão. "Uma terra de possibilidades" repete. "Quando eu estava na Tanzânia pensava como pensam os europeus. Pensava que para se ter uma fábrica de têxteis era necessário muito dinheiro, um grande espaço, máquinas caras... Aqui na China aprendi que não: uma fábrica de têxteis faz-se com uma família, num andar de uma habitação". E em que outro país poderia Jesse ter sobrevivido com uma bolsa de 500 yuan (cerca de 56 euros)?

Jesse criou uma empresa de importação/exportação com uma sucursal na Tanzânia gerida pelo irmão. Entretanto casou com uma chinesa e, diz Yi Lin com uma pontinha de inveja, já vai no terceiro filho, não é Jesse? Jesse faz questão de dizer que ele é diferente de outros colegas africanos, muitos deles considerados "triplamente ilegais" pelas autoridades chinesas: ilegais na entrada, ilegais na permanência, ilegais no trabalho.

Tão diferente que em breve participará num dos mais importantes festivais chineses: o festival do barco dragão. Jesse será o homem do tambor que marca o compasso do bater dos remos nas águas claras do Rio do Norte, nem que para isso tenha de emagrecer mais uns quilos.

No quinto dia do quinto mês do calendário lunar, em 28 de Maio, Jesse relembrará com os seus amigos chineses o dia em que, há mais de dois mil e trezentos anos, Qu Yuan, ministro do imperador Zhou, se suicidou nas águas do Rio Milou. Qu Yuan era um homem sábio e honesto que lutou contra a corrupção abundante na corte e por isso mesmo foi afastado e exilado. No exílio escreveu e ensinou conquistando o coração dos chineses que, no exacto dia do seu suicídio, batem as águas dos rios de toda a China afastando os peixes com os remos e com o som do tambor que Jesse tocará, enquanto nas margens milhares de pessoas atirarão aos rios bolos de arroz embrulhados em folhas de bambu. Se puder, Qu Yuan alimentar-se-á; se não, os peixes que o façam e o deixem em paz.

Voltar à Tanzânia? Jesse sorri acariciando o tejadilho do carro acabado de lavar. Talvez não, para ele a China é o país mais seguro do mundo. Para muitos dos seus compatriotas o sonho chinês substitui o sonho americano.

Professora na ISCTE Business School
Coluna à terça-feira, excepcionalmente é publicada hoje


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