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23 de Novembro de 2015 às 00:01

A bicicleta na China

Quem visitar hoje as cidades chinesas ficará desapontado ao verificar que uma das suas imagens de marca, a bicicleta, desapareceu das ruas engolida pela profusão de carros.

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Nada faz pensar que há vinte ou trinta anos a bicicleta era o produto mais popular na China e a prenda preferida nas ocasiões mais importantes, como casamentos ou visitas oficiais. Ainda em 1986 o presidente americano George Bush (pai) recebeu da China duas bicicletas como presente. Não eram umas bicicletas quaisquer, pertenciam à famosa marca Fei Ge (pombo voador) então o veículo mecanizado mais popular do planeta, símbolo de uma sociedade igualitária com um toque de progresso e ainda assim custando cerca de quatro meses de salário a um vulgar trabalhador além de alguns anos em lista de espera.

 

A imagem de muitos milhares de bicicletas a fluírem nas ruas como rios, sem sinais de trânsito que as impedissem, é a memória mais pungente que conservo de 1989 num inverno muito frio em Xangai. Terá sido então que, sem qualquer fundamento, comecei a construir a ideia de que a bicicleta tinha sido inventada na China. Esta ideia foi-me confirmada numa conversa de café pelo meu amigo Xu Chuan apostado em provar-me que a maior parte das invenções modernas tiveram a sua origem na China. Por exemplo, todos sabemos que a pizza mais não é mais do que uma tentativa (falhada) de Marco Polo para imitar o Cong You Bing, a pizza chinesa, uma saborosa massa na qual os ingredientes são misturados com a farinha. Encantado com a iguaria, Marco Polo tentou replicá-la em Itália mas, incapaz de reproduzir a tecnologia, resolveu o problema colocando os ingredientes sobre a massa e não dentro dela.

 

Xu garantiu-me que, à semelhança da pizza e de um número incontável de outras descobertas, também a bicicleta foi inventada na China. Isso terá acontecido há cerca de 2.500 ou 3.500 anos (quem está a contar?) por um prolífico inventor de nome Lu Ban, quase por acaso, quando procurava desenvolver a utilização de novas armas. A História não regista o que terá acontecido a semelhante invenção, mas não foi sem surpresa que, pouco depois da conversa com Xu Chuan, me deparei com este livro meio escondido na escassa secção de literatura estrangeira na biblioteca da universidade onde trabalho: "Através da Ásia numa bicicleta: a jornada de dois estudantes americanos de Constantinopla a Pequim." Em jeito de literatura de viagem, nele se relata a história de dois amigos aventureiros que pedalaram ao longo de 25.000 km no que os chineses designaram por "estranhos cavalos de ferro". Por muito espanto que tenham causado na Ásia Central, nada fazia prever o extraordinário acolhimento que os esperava mal atravessaram a fronteira e entraram na província chinesa de Xinjiang. Em 1891, na dinastia Qing, a chegada de ocidentais por si só era mais do que suficiente para provocar grande excitação. "Interessaram-se em especial pelos nossos botões. Tiraram-nos os bonés e experimentaram-nos à vez, com grande alarido", relatam os dois amigos. As notícias da sua iminente chegada à próxima aldeia viajavam antes deles e a expectativa crescia enquanto as mais diversas descrições dos veículos se multiplicavam: "São pequenas mulas que se conduzem pelas orelhas e se pontapeiam nos flancos."

 

Em Pequim, o interesse não foi tanto nos veículos em si, mas também na longa viagem que estes tinham feito e que muitos julgaram não ser de todo possível. Já em 1866 se tinha ouvido falar em Pequim da bicicleta. Nesse ano, Bin Chun, um diplomata chinês, visitou Paris e relatou que nas ruas as pessoas montavam um veículo de duas rodas unidas entre si por um tubo: "Sentam-se no tubo e empurram as rodas para a frente com os pés. Movem-se como cavalos a galope." Talvez esta descrição não tenha sido suficiente para que uma bicicleta moderna fosse de imediato produzida na China, mas a viagem dos dois amigos americanos foi por certo inspiradora. Em meados do século XX, a China era já o reino da bicicleta e Deng Xiaoping, o líder responsável pela abertura da China, definia prosperidade como sendo a posse de uma Fei Ge em cada casa. Se em 1958 a China produzia um milhão de bicicletas por ano, o meu amigo Xu Chuan lamenta que poucas se vejam agora nas ruas chinesas e, no entanto, quem arrisca enfrentar a poluição?

 

Professora no ISCTE Business School

 

Artigo escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico

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