Opinião
O Parlamento e o mal-estar
Deputados de todos os partidos deram mil e novecentas faltas, durante o primeiro ano da X Legislatura. «Mas justificadas», alegaram, apressuradamente, os faltosos.
As «justificações» baseiam-se em desculpas mais ou menos hilariantes, mais ou menos aceitáveis. Revelam, porém, um panorama de laxismo que não deixa indiferente a massa pública, e cava um fosso cada vez mais acentuado, entre o português comum, e aqueles, «escolhidos» e «eleitos», cuja maioria de nomes e de acções é totalmente desconhecida por todos nós.
O Parlamento surge, a nossos olhos vulgares, como um emprego (não um trabalho: um emprego), habitualmente atribuído como benesse a quem se portou bem e foi lisonjeiramente obediente ao partido e, sobretudo, ao chefe. A sinecura é de tal ordem que há quem se ofereça, desavergonhadamente, para deputado, baseando a oferta na «importância» do seu nome, ou da «mediatização» pessoal. Embora, o resultado tenha sido decepcionante, a verdade é que, nesta feira do «oferece-se» e «aceita-se», a falta de pudor converteu-se em «normalidade».
A realidade que existe tem sido substituída pela realidade que o sujeito imagina ou fantasia. Entramos nos domínios do delírio. E o delírio é um problema que transcende, inclusive, os limites da psicopatologia e da psiquiatria e invade aqueles que consideramos normais. Estamos, portanto, num terreno ambíguo. No entanto, no caso dos deputados da nação, a perda do sentido da realidade é parcial. Quanto se trata dos proventos, das ajudas de custo, das «missões» pagas, das prebendas, eles manifestam uma solicitude sem faltas.
Nem sempre as coisas foram assim. Mas a festa durou pouco tempo. Os aparelhos partidários abençoaram este e aquele e amaldiçoaram outros tantos. O nível decaiu assustadoramente. Ou não assustadoramente. A seguir, será pior.
O respeito devido à instituição foi rapidamente sovado. Confundiu-se veemência e agressividade vocabular com ordinarice, grosseria, insulto e injúria. Sob a capa da impunidade o que, amiúde, se ouve no Parlamento, é de fazer corar um eguariço. Além do que os espancamentos ao idioma chegam a atingir as raias dos tratos de polé. Diz-se: o Parlamento é a imagem desdobrada do País. Não é. Apesar de escabroso e funesto e ignorante, Portugal ainda é habitado por quem salva a honra do convento. Estamos mal. O Parlamento está pior.
Os problemas da pátria não são discutidos, exactamente porque a esmagadora maioria dos deputados não os conhece ou os ignora absolutamente. Na opinião dos portugueses, eles estão lá para governar a vidinha, adormecem um pouco após lautos almoços, intrigam levemente, bocejam e bradam: «Apoiado!», quando alguém, da sua bancada, afirmou algo de imponderável e, as mais das vezes, incompreensível. De vez em quando, alguns deles largam umas bojardas nas televisões, assinam o ponto e vão celeremente embora para os seus empregos bem remunerados e obtidos através da rede de conhecimentos proporcionada pela funçanata.
Este assunto das mil e novecentas faltas é um incidente no áspero acidente da «nomeação» dos «eleitos». Durante anos, fui contra os círculos uninominais. Entendia que esse método propiciava a ascensão do caciquismo mais sórdido. A verdade é que, no sistema actual, o caciquismo também existe, embora mascarado. Chamam-lhes os «dinossauros», estimável enunciação destinada a encobrir a manutenção no poder, sabendo-se que todo o poder corrompe e que o poder prolongado corrompe absolutamente.
Nos círculos uninominais, e no exercício de funções com prazos circunscritos, a vigilância será, eventualmente, muito mais acentuada e eficaz. Haverá, de certeza, outros berbicachos a surgir; todavia, a prática democrática implica o correr de riscos.
Os deputados, cheios se compaixão por eles mesmos, afirmam-se mal pagos. E audazes comentadores sublinham que as elites fogem a sete pés, não só do Parlamento como das empresas públicas. No privado auferem proventos maiores. Mas foi através do Parlamento e de cargos exercidos em empresas públicas que eles conseguiram lugares «privados» muito bem remunerados. O Parlamento, os ministérios, a «gestão» pública forneceram uma legião de pessoas (homens e mulheres) a companhias particulares, com os benefícios que se conhecem. Esta gente não está, não esteve, nunca estará interessada em resolver, ou ajudar a resolver, os dilemáticos problemas com que a sociedade portuguesa se defronta, especialmente aqueles mais indefesos, mais pobres, mais sem segurança.
Seria bom que o «jornalismo de investigação» se debruçasse sobre este indecoro moral. Digo «moral» porque tudo é feito no estrito respeito pelas leis? por eles próprios organizadas e estatuídas. O mal-estar em que vive a esmagadora maioria dos nossos concidadãos deve-se a essa repugnante indiferença dos que (quase todos) se declaram «eivados do espírito de missão», e somente se preocupam com as suas vidas miseráveis e repulsivas. O «jornalismo de investigação» prestaria assinalável serviço acaso revelasse para onde foram, onde estiveram e onde estão, desde há trinta anos, os que fizeram carreira em São Bento, plataforma giratória para se devotarem a outros santos.
Os escândalos morais sucedem-se. Como sou dos portugueses que pagam os impostos (também não sei como fazê-lo!), sou dos portugueses que pagam as reformas sumptuosas, o descalabro das acumulações, a vida airada desta gente sem grandeza nem qualidade. Não se importam connosco, não se preocupam com o País, não gostam de nós. Podemos gostar desta gente?
APOSTILA - Dilecto: aí vai uma recomendação - o belíssimo álbum «Nacional e Transmissível», de Eduardo Prado Coelho, editado pela Guerra & Paz, concepção artística de Luís Miguel Castro. Logo à entrada estão definidas as regras do jogo: «O objectivo deste livro consiste em tratar de um modo relativamente rápido e extremamente subjectivo um certo número de tópicos que correspondem a realidades específicas daquilo que se designa como ‘ser português’». A ideia parece arrojada, quando não absurda, mas resulta num objecto literário e gráfico excepcional. Prado Coelho discreteia, por vezes com suave ironia, sempre num estilo cativante e numa perspectiva original, sobre o que nos caracteriza. Na pastelaria, nas devoções, nas pequenas subserviências, na arteirice e nos sentimentos. Do pastel de nata ao vinho do Porto, do bacalhau ao «passar pelas brasas», das sardinhas assadas a Fernando Pessoa e ao ir ao café, da roupa à janela ao fado até ao Cais da Ribeira - é um rol de gostos, comportamentos, paisagens e emoções que, aparentemente, apenas a nós pertencem. Vale a pena adquirir e ler este álbum. E oferecer a quem mais lhe aprouver. Boa leitura, Dilecto!