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20 de Fevereiro de 2009 às 13:22

O hotel de Chekov

Estava eu a abrir o jornal e li uma notícia absolutamente incrível: 61% das famílias portuguesas sofrem dificuldades financeiras. Uma coisa destas só pode ter sido escrita por quem não anda de táxi porque provavelmente tem um Jaguar, mora na Quinta da Marinha e não almoça numa cantina.

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Estava eu a abrir o jornal e li uma notícia absolutamente incrível: 61% das famílias portuguesas sofrem dificuldades financeiras. Uma coisa destas só pode ter sido escrita por quem não anda de táxi porque provavelmente tem um Jaguar, mora na Quinta da Marinha e não almoça numa cantina.

É que, meus queridos amigos, 99,9% devem sofrer de dificuldades financeiras. Todos, pobres, ricos e remediados - e para que não pensem que o facto de eu estar aqui a mencionar os ricos é um erro, lembrem-se daqueles pobres daqueles ricos (é o termo! E não confundam com podres de ricos, que é outra coisa) que tinham contas e aplicações no BPP e que ficaram a arder (de raiva) por terem ficado sem nada e que nem sequer se conseguiram salvar nos últimos dias, como puderam alguns.


Não são os pobres que estão ameaçados na presente crise, meus queridos amigos, não senhor. Esses já eram pobres, e apenas o vão continuar a ser. Pelo contrário, uma "boa" crise até reforça a igualdade social porque torna mais gente pobre, e uma crise a sério, que nos torne a todos pobres, criaria até uma sociedade sem classes, como queria o outro. Este nivelamento da sociedade só é mau por ser um nivelamento por baixo, assim pela subcave que nem rés-do-chão é.

Também não são os ricos que estão ameaçados, pois esses podem tentar fugir, porque têm mais mobilidade - quem tem dinheiro vai para onde quer. Os ricos nunca pagaram uma crise, e não acredito que seja agora que vão começar a pagar.

Quem perde numa crise é quem está no meio, a classe média, que não tem o suficiente para poder ter alternativas e portanto fica reduzido a acabar pobre. Aliás, já dizia Anton Chekov que qualquer idiota faz frente a uma crise, é o dia-a-dia que nos manda abaixo.

Foi inspirado em Chekov e a ouvir os Supertramp no seu magistral álbum "Crisis! What Crisis?" que o meu colega argelino Kemal Uko desenvolveu a prova matemática do que acabo de vos contar: o declínio e inexorável extinção desse notável produto da revolução industrial, a classe média.

Refaçamos então as contas de Kemal. Imaginemos a crise no nosso País, o que aliás não requer grande imaginação hoje em dia. Suponhamos que temos dez milhões e meio de pessoas e que, de entre estas, 500.000 pessoas têm dificuldades financeiras e o seu número duplica a cada ano de crise, o que o mesmo artigo de jornal diz que aconteceu em 2008. Admita-se ainda, para simplificar, que há cinco mil ricos e que o seu número a cada ano se reduz a metade. Significa isto que no momento inicial, o ano 0, há uma classe média de 9.995.000 pessoas, ou cerca de 95% da população. Porém, após o primeiro ano de crise já teremos um milhões de pobres e a classe média já terá caído para 90% da população; nada de preocupante, mas quand même!

Ao fim do segundo ano de crise já teremos dois milhões de pobres e a classe média terá caído para 80% do povo. Se ainda não vos preocupa, meus queridos leitores, ao fim de quatro anos de crise os pobres já serão mais de 75% da população e a classe média terá menos de dois milhões e meio de pessoas.

Podemos então calcular o momento em que a classe média fica reduzida a zero pessoas, isto é, desaparece. Isto acontecerá no momento em que teremos 10.499.779 pobres e 211 ricos, sobreviventes da hecatombe. Para que se possam preparar, meus queridos leitores, posso dizer-vos que tal se dará ao fim de quatro anos, cento e dezoito dias, duas horas, nove minutos e quatro segundos. Este é o tempo que têm para se pôr a mexer do País para fora. Mas se vos parece pouco tempo, lembrem-se: já lá vai um ano de crise.


Frederico Bastião é Professor de Teoria Económica das Crises na Escola de Altos Estudos das Penhas Douradas. Quando perguntámos a Frederico o que pensa de a crise ter chegado aos hotéis de luxo, Frederico respondeu: "Acho bem, desde que eu possa ir com ela."

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