Opinião
O companheiro que nunca ficou para trás
Vasco Granja, que morreu há dias, com 82 anos, foi uma unanimidade. A dimensão humana deste homem sorridente, bondoso, culto, solidário, tornava-se incomum, até porque essas admiráveis virtudes lhe eram congénitas, naturais.
Vasco Granja, que morreu há dias, com 82 anos, foi uma unanimidade. A dimensão humana deste homem sorridente, bondoso, culto, solidário, tornava-se incomum, até porque essas admiráveis virtudes lhe eram congénitas, naturais. De uma geração anterior à minha, ele envolveu-se nas batalhas do tempo que lhe coube viver, correndo os riscos inerentes e pagando o ónus desses riscos com a cadeia. Por duas vezes a polícia política o prendeu, e nem a brutalidade habitual, naqueles casos, lhe fez perder o sorriso afável e a conversa cordial.
Conheci-o nas lutas políticas que se travavam, um pouco por todo o lado, na sociedade portuguesa. O cineclubismo foi uma dessas plataformas de resistência que reuniu milhares dos jovens de então. E numerosos dos textos de apoio aos filmes a exibir foram redigidos pelo Vasco. É impressionante o que o cineclubismo representou na rude batalha contra o fascismo. Não foi, apenas, uma escola do olhar, um modo de aprendizagem, um acto de pedagogia acerca daquilo que quase todos os filmes escolhidos queriam dizer; foi, sobretudo, uma disciplina ideológica e um profundo acto moral.
Os maiores nomes que, hoje, marcam a literatura, o cinema, o teatro e, até, o jornalismo português foram produzidos pelos clubes de cinema. E o sinal dessa cadeia de cultura manteve-se até hoje. Evidentemente, as opções conduziam a discussões formidáveis, e as ortodoxias emergiam: políticas e estéticas. Havia grupos que defendiam, encarniçadamente, as teses defendidas pelos "Cahiers du Cinema" (de que possuo uma colecção valiosa, até pelo que me recorda da juventude e dos amigos de então); e outros, acaso mais politizados, que eram paladinos do "Cinema Nuovo", de Guido Aristarco e de "Positif", de Ado Kirou. De qualquer das formas, muitos, de ambos os grupos, tinham sido (ou eram) militantes do MUD Juvenil, a organização antifascista da juventude.
Íamos ouvir o Coro da Academia dos Amadores de Música, a que todos chamávamos o Coro do Lopes-Graça, a cantar "Não fiques para trás, ó companheiro", e assistir, no Teatro da Rua da Fé, aos recitais de Maria Barroso, cuja fogosidade nos empolgava. É imensa a lista de símbolos e de referências, de ritos e de liturgias que demarcavam uns e outros. Porque, não o esqueçamos, havia dois Portugais: o "deles", com censura, masmorras, polícias, tortura, perseguições, assassínios - e o "outro", o "nosso", clandestino, perigoso, a que Vasco Granja pertencia.
Durante anos, ele trabalhou na Casa Travassos, lotarias e amizade, ali, no Rossio. Deslocávamo-nos até lá, para conversar um pouco, antes de irmos beber para a Leitaria Passo, uísque a dez escudos, onde nos reuníamos com Manuel da Fonseca, Armando Ventura Ferreira, João Carreira Bom, António Borga, que contava as a venturas de que fora protagonista nos Mares da China. O Granja passava-nos revistas, livros proibidos, indicava-nos títulos, filmes, espalhava sorrisos e - porque não dizê-lo? - ternura. Ternura, isso mesmo. Não havia, não há outro homem como ele. Até na ausência de ressentimento para com aqueles que o haviam torturado, o Vasco Granja era diferente.
A certa altura, percebi que ele não se sentia bem no emprego. Falei, então com António Ramos (saúde, velho António!), editor da Bertrand, "um príncipe da Renascença", como era designado pelo Urbano Tavares Rodrigues, e cuja elegância moral e intelectual era lendária. Logo, o Ramos contratou o Granja para a Bertrand, empresa na qual desempenhou um papel ímpar no conhecimento e na divulgação de grandes nomes da Banda Desenhada. Nunca o Granja abandonou as convicções de juventude, nunca deixou de acreditar num mundo novo - e nunca desamparou o ensino (porque de ensino verdadeiro se tratou) dos filmes de animação e das características maiores da Banda Desenhada.
Todos nós ficámos a dever alguma coisa a este ser humano discreto, humilíssimo, que dispunha de uma sabedoria e de tantos conhecimentos culturais - quanto pesporrente e imensa é a soberba de muitos. Não sei, parece-me que não, se o Granja foi, vez alguma, homenageado pelos poderes culturais instituídos. Se o não foi, devia sê-lo. Ele não estava, nunca esteve à espera de venerações. Com modéstia e discrição sorridente dizia-nos que somente cumpria o seu dever. E esse dever feliz, e felizmente assumido, consistia em fazer palestras, organizar sessões de cinema de animação, enaltecer desvanecidamente o seu amigo Norman MacLaren, ajudar os mais novos, emprestar-lhes livros, revistas, textos sobre literatura, artes, filosofia.
Sabia-o muito doente. Sabia-o com momentos de lucidez. Sabia-o. Sobretudo sabia-o. E isso seria, talvez, o mais importante, não pelo que fora, sobretudo pelo que era ainda. Uma legião de amigos dessa época percorre, num tropel de imagens, as minhas lembranças calorosas. O Vasco era, certamente, o melhor de nós. E possuir este património não é para todos. Vasco Granja. O companheiro inesquecível que nunca ficou para trás.
b.bastos@ netcabo.pt
Conheci-o nas lutas políticas que se travavam, um pouco por todo o lado, na sociedade portuguesa. O cineclubismo foi uma dessas plataformas de resistência que reuniu milhares dos jovens de então. E numerosos dos textos de apoio aos filmes a exibir foram redigidos pelo Vasco. É impressionante o que o cineclubismo representou na rude batalha contra o fascismo. Não foi, apenas, uma escola do olhar, um modo de aprendizagem, um acto de pedagogia acerca daquilo que quase todos os filmes escolhidos queriam dizer; foi, sobretudo, uma disciplina ideológica e um profundo acto moral.
Íamos ouvir o Coro da Academia dos Amadores de Música, a que todos chamávamos o Coro do Lopes-Graça, a cantar "Não fiques para trás, ó companheiro", e assistir, no Teatro da Rua da Fé, aos recitais de Maria Barroso, cuja fogosidade nos empolgava. É imensa a lista de símbolos e de referências, de ritos e de liturgias que demarcavam uns e outros. Porque, não o esqueçamos, havia dois Portugais: o "deles", com censura, masmorras, polícias, tortura, perseguições, assassínios - e o "outro", o "nosso", clandestino, perigoso, a que Vasco Granja pertencia.
Durante anos, ele trabalhou na Casa Travassos, lotarias e amizade, ali, no Rossio. Deslocávamo-nos até lá, para conversar um pouco, antes de irmos beber para a Leitaria Passo, uísque a dez escudos, onde nos reuníamos com Manuel da Fonseca, Armando Ventura Ferreira, João Carreira Bom, António Borga, que contava as a venturas de que fora protagonista nos Mares da China. O Granja passava-nos revistas, livros proibidos, indicava-nos títulos, filmes, espalhava sorrisos e - porque não dizê-lo? - ternura. Ternura, isso mesmo. Não havia, não há outro homem como ele. Até na ausência de ressentimento para com aqueles que o haviam torturado, o Vasco Granja era diferente.
A certa altura, percebi que ele não se sentia bem no emprego. Falei, então com António Ramos (saúde, velho António!), editor da Bertrand, "um príncipe da Renascença", como era designado pelo Urbano Tavares Rodrigues, e cuja elegância moral e intelectual era lendária. Logo, o Ramos contratou o Granja para a Bertrand, empresa na qual desempenhou um papel ímpar no conhecimento e na divulgação de grandes nomes da Banda Desenhada. Nunca o Granja abandonou as convicções de juventude, nunca deixou de acreditar num mundo novo - e nunca desamparou o ensino (porque de ensino verdadeiro se tratou) dos filmes de animação e das características maiores da Banda Desenhada.
Todos nós ficámos a dever alguma coisa a este ser humano discreto, humilíssimo, que dispunha de uma sabedoria e de tantos conhecimentos culturais - quanto pesporrente e imensa é a soberba de muitos. Não sei, parece-me que não, se o Granja foi, vez alguma, homenageado pelos poderes culturais instituídos. Se o não foi, devia sê-lo. Ele não estava, nunca esteve à espera de venerações. Com modéstia e discrição sorridente dizia-nos que somente cumpria o seu dever. E esse dever feliz, e felizmente assumido, consistia em fazer palestras, organizar sessões de cinema de animação, enaltecer desvanecidamente o seu amigo Norman MacLaren, ajudar os mais novos, emprestar-lhes livros, revistas, textos sobre literatura, artes, filosofia.
Sabia-o muito doente. Sabia-o com momentos de lucidez. Sabia-o. Sobretudo sabia-o. E isso seria, talvez, o mais importante, não pelo que fora, sobretudo pelo que era ainda. Uma legião de amigos dessa época percorre, num tropel de imagens, as minhas lembranças calorosas. O Vasco era, certamente, o melhor de nós. E possuir este património não é para todos. Vasco Granja. O companheiro inesquecível que nunca ficou para trás.
b.bastos@ netcabo.pt
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