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15 de Novembro de 2005 às 13:59

Nós e os carros em chamas

Ou muito me engano ou a preponderância nos comentários sobre a violência nas ruas francesas tem sido daqueles que se mostram fartos das explicações desculpabilizantes e apelam à repressão e à responsabilização dos vândalos.

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Eu próprio me tenho surpreendido a dizer ou a repetir palavras que, ditas há muito pouco tempo, me espantariam. «Escumalha» é uma delas.

Não sei o que cada uma das pessoas que hoje cobram a responsabilização dos vândalos das ruas francesas diria disso tudo se tudo isso se passasse há 10 ou 15 anos. Sei que eu próprio diria coisas muito diferentes das que digo hoje, e reconheçamos que por muitos, muitos anos, a preponderância dos formadores de opinião – e eu atrás deles - apontava para o sentido inverso daquele para que hoje me parece apontar: os jovens, donos de uma generosidade intrínseca, eram vítimas do sistema, da exclusão, do preconceito, de nós todos, e a culpa, ao fim e ao cabo, era do dono do carro que ardia.

Não me parece que tenha havido uma troca de nomes considerável entre os formadores de opinião nos últimos 10 ou 15 anos e, com o decisivo reforço da minha experiência individual (por falta de outros, é com os meus olhos que vejo o mundo) formei a convicção de que a mutação aconteceu em nós próprios – as pessoas são as mesmas mas não vêem os acontecimentos das duas últimas semanas em França da mesma maneira que os veriam há 10 ou 15 anos. Também não deixa de ser verdade que os mesmos acontecimentos, se acontecessem há 10 ou 15 anos, não seriam os mesmos porque não seria o mesmo o contexto. Mas isso não altera o ponto a que pretendo chegar: não foram os jornais, os partidos, os governos, as universidades ou qualquer outra instituição de produção de pensamento político que mudou, mas a Europa, na sua expressão mais pequena – os europeus (nós, cada um) – que mudou a sua sensibilidade em relação a assuntos vitais como ordem, cultura, segurança, imigração e, acima de tudo, sobre a própria Europa.

Fui – e a generalidade dos da minha geração (nasci em 1963) – educado sob a ideia geral de que a esquerda era boa e a direita, má. A essa ideia geral penduravam-se outras, tais como: a Europa é egocêntrica (quem seria menos egocêntrica – a Ásia, os EUA?); as guerras e os massacres em África devem-se às distorções impostas pelo colonialismo europeu (a África anterior à colonização havia de ser um refúgio de paz e harmonia); os europeus impuseram a escravatura (o facto de a escravatura em África ser muito anterior à sua exploração pelos europeus e de serem africanos os fornecedores dos escravos era irrelevante); Israel oprime os palestinianos e, portanto, os palestinianos são os oprimidos e, por isso, de esquerda, ou seja, bons, e, com eles, todos os seus irmãos islâmicos ou, de alguma maneira, morenos – especialmente se tiverem barbas compridas (à Marx) ou ralas e mal aparadas (à Guevara). À boçalidade esquerdóide juntava-se um resquício de idiotice hippóide (sabedoria oriental versus consumismo ocidental) e imagine-se o jovem que fui (que fomos, reconheça-se). Não por acaso, éramos nós jovens quando Nelson Rodrigues fez o grande chamamento: «Jovens, envelheçam!».

Envelheci. E ainda bem. Posso obrigar-me (a hipótese de me obrigar a alguma coisa é, por si só, uma prerrogativa – ou uma obrigação - da idade madura) a ponderar as coisas. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. E temo ter saudades dessa Europa que se culpava por tudo, porque o seu avesso – embora parecido com este velho em que me tornei (ou por isso mesmo) - assusta-me.
 
O que não sei é se se deva dizer aos jovens que incendeiam as ruas de França: «Envelheçam!».

É que os canalhas também envelhecem.

PS: Que orgulho podem os europeus ter de serem europeus enquanto na Europa (especificamente, em Oeiras) os europeus estacionarem os seus carros particulares em cima do passeio público?

PPS: Dizem os meninos que incendeiam as ruas de França que de outra maneira não seriam ouvidos. Digam... Não dizem nada e, de resto, esse problema de não ser ouvido não se restringe a eles. O meu filho e os amigos do meu filho queixam-se do mesmo. E nem por isso incendeiam os carros dos outros. E eu, que sou jornalista e tudo, escrevo há mais de um ano, uma vez por semana, a queixar-me da impunidade dos que, em desrespeito à Lei, estacionam em cima dos passeios, e não tive a ventura de ser ouvido por ninguém. Estão, com certeza, à espera de que eu queime um carro.

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