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29 de Novembro de 2005 às 15:39

Natal cartonado

A cara de porcelana negra rasgou-se num sorriso antes de voltar a mergulhar nas águas quentes, barrentas, da Costa do Sol. E o menino sumiu-se uma eternidade, no mar batido em refregas pelo vento forte, que pintava cabritinhos brancos, no despencar das on

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A cara de porcelana negra rasgou-se num sorriso antes de voltar a mergulhar

nas águas quentes, barrentas, da Costa do Sol. E o menino sumiu-se uma eternidade, no mar batido em refregas pelo vento forte, que pintava cabritinhos brancos, no despencar das ondas.

Moloco era isso mesmo, "maningue (muito) louco" para quem o via, dias a fio, noites adentro, brincando no mar e nele desaparecendo tempos sem-fim.

Menino-peixe que, por estranhos chicuembos (feitiços), o ar fora dispensado de respirar.

Pelomenos assim parecia, aos olhos que quem ficava ali a apostar, quantos minutos mais se sumiria ele nas profundezas, enquanto as gaivotas mergulhavam e saíam, de fôlego esgotado.

Moloco desistiu de ser gente, quando o Mundo desistiu de ele ser menino. E o deixou sozinho, vivendo entre carcaças de carros, na "baixa" da cidade.

Parecia aquela anedota de pessoa, de certa raça, só ser gente quando sentada na casa de banho, alguém batia à porta e ele respondia "tem gente": NumMundo desses,Moloco preferia desconseguir de ser gente, em latrina alheia, e escamar-se antes de peixe, nas águas do Índico, onde a nudez requerida não distingue condições, apenas estados de alma.

Pelo menos, ali, o menino não tinha rival, campeão que nascera, na arte de sobreviver.

Do pai nunca soubera nome e da mãe só recordava a capulana laranja, estampada, de Tina, que lhe abraçava o corpo emagrecido quando a negra o deixou, pela última vez, junto ao bazar, com um Oceano desaguado nos olhos.

Diz, quem sabe, que é por isso que Moloco se passou a embalar todos os dias no mar. Quando este se tornou desde aquele dia a varanda de sua mãe, onde ele regressa ao útero da vida, travestindo-se de gente.

Moloco ainda visitou os bancos da primária enquanto a escola lhe aceitava a falta de lápis, o cheiro diferente da roupa nunca lavada e que o passar do tempo foi rendilhando de entras e saídas de ar e de sonhos. Embrulho de Natal há muito devassado.

Depois, restaram-lhe as ruas da cidade, viveiro de centenas de meninos como ele, onde eram reis e generais.

Parcando carros, deslavando-os com panos nauseabundos ou chinchando, aqui e ali, papaias em angas melosas, amadurecidas nos quintais. Depois era dar corda aos pézitos nús, na fuga ligeira, sobre muros e o asfalto quente esburacado.

Quando a noite chegava, eles desciam à baixa para ver as decorações de Natal, as montras cheias de embrulhos e laços de fantasia, semeadas de um pó branco que lhes diziam ser neve. "Coisas de Natal lá das Europas e das Américas". Coisa estranha para eles, que naqueles azimutes, passavam o Dezembro a suar a estopinhas e a refugiar-se do calor húmido, nos fios de água. Nos beijos domar.

Moloco não sonhava com as prendas, mas sim em ser aquele senhor barbudo, vestido de vermelho e barriga grande. Porque as prendas - explicava ele, entre mergulhos - só são eternas para quem as dá. Sendo apenas mágicas para quem as recebe até ao abrir -Omenino voltava assim a descarrilar do Mundo que o desperdiçava, onde a vertigem é de ter e não de dar. Ou, pelo menos, o prazer é aquela coisa que se consome e deita

fora e não um estado de espírito, que se alimenta e sacia.

Por isso ele preferia ser, aquele senhor de barba branca, que todos os anos aparecia nas montras arrastando um saco enorme de caixas e laços coloridos, desenhando sorrisos, construindo sonhos. Mesmo sendo um desenho recortado, em papel cartonado.

Moloco voltava ao oceano dos olhos de sua mãe e mergulhava nas ondas da Costa do Sol, até se sentir irmão dos peixes, num presépio de algas e coral, onde ele era o tal senhor, de sorriso rasgado, distribuindo conchas e búzios, a quem lhes visse os brilhos.

Quando a lua semeava pérolas na pele domar, o menino estava lavado, por dentro e por fora, sentindo-se gente. Mesmo sem roupa. Mesmo sem casa. Mesmo sem nada. Porque no sonho em que nadava, era ele quem dava prendas.

Tornando-se completo. Saciado. Moloco era mesmo "maningue" (muito) louco. Assim, sem nada. Aos olhos de quem passava, e via o menino-peixe, horas a fio, rasgando sorrisos de porcelana negra, entre as ondas do mar e os brilhos do Mundo.

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