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Alexandre Brandão da Veiga 30 de Março de 2005 às 13:59

Multiculturalismo

Quem não separa as águas, a longo prazo começa a perceber que o que julgava ser variedade mais não era que múltiplas formas de não se ser coisa nenhuma. Essa a minha crítica ao multiculturalismo.

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É a Europa multicultural? Deve a Europa ser multicultural? As duas questões têm sido, com e sem intenção, confundidas na praça pública. Ora se diz que é para nos demonstrarem que estamos perante um facto consumado, ora se diz que deve ser para forçar essa mesma consumação. De comum, entre quem diz que é e quem diz que deve ser, ou a vontade ou a resignação com a tendência multicultural na Europa, ou o que se julga ser essa tendência.

Em abono desse multiculturalismo diz-se que se criam sociedades mais democráticas, mais ricas, mais modernas. Ora a experiência diz-nos tudo o contrário.

Vejamos o que é e não é o multiculturalismo.

O multiculturalismo não é um fenómeno cultural, mas acima de tudo um problema político. A sua discussão não entra nos conteúdos da cultura, mas apenas na conciliação meramente política de incompatibilidades entre as culturas.

O multiculturalismo é pouco imaginativo. Existem grosso modo quatro formas de lidar com a pluralidade cultural. A uniformidade, que nem que seja miticamente, tem como paradigmas o Japão e a China. A miscisgenação, em que existe uma só cultura feita de sincretismo, de mistura, de que são exemplo máximo o Brasil, mas que encontramos igualmente em Cabo Verde, nas Caraíbas. A diversidade, de que são exemplos de excelência a Europa e a Grécia antiga. E só em quarto lugar o multiculturalismo, cujos exemplos veremos depois. Reduzir a questão da pluralidade cultural ao multiculturalismo é pois uma ditadura de pensamento, reduzir perante a opinião pública o espaço das possibilidades.

O multiculturalismo nunca foi democrático. Os exemplos de multiculturalismos na História, são, na Europa, o império austro-húngaro, a Rússia dos czares, e fora dela o império turco, o medo-persa, entre outros. Todos eles despóticos, nenhum deles exemplo de democracia. O multiculturalismo não é um reforço da democracia, mas um seu problema maior e um risco para ela.

O multiculturalismo é medíocre sob o ponto de vista cultural. Ninguém pode apontar um génio turco (duvido aliás que esse povo com fortes sintomas esquizoides - um asiático que se pretende europeu, que outra coisa pode ser? - produza algum dia alguma coisa de relevante sob o ponto de vista cultural, como a História tem demonstrado). E se a Rússia e o império austro-húngaro produziram génios foi enquanto parte do espaço de diversidade europeu. A Rússia começa a produzir génios em contacto com a diversidade da Europa e enquanto europeus. São os russos a gerar génios, não os casaques ou turquemenos. E no império austro-húngaro os génios produzem música em contacto com a Itália, literatura em contacto com a França, ciência em contacto com a Alemanha.

O multiculturalismo é apenas criador de restaurantes e festarolas. Quando vemos as obras do multiculturalismo, a música de fusão, não encontramos nem ciência, nem filosofia, nem arte digna desse nome. O multiculturalismo é meramente fruidor e não criador. Que exemplo se pode dar de grande génio multicultural? Que grande movimento da História foi obra do multiculturalismo? A grande cultura cristã no império árabe (São João Damasceno, por exemplo) continuou intocadamente cristã. A grande poesia persa manteve-se persa. E as raras grandes sínteses surgidas no multiculturalismo não são multiculturais, mas alheias a ele. Plotino vive no império romano, mas é grego, Políbio admira Roma,mas é grego. A ciência de Alexandria não juntou egípcios e gregos, mas apenas pessoas de cultura grega. De Serápis e Mitra, ou do culto romano de Ísis ou Astarte pouco sobrou exactamente porque são o resultado de fusões nascidas do multiculturalismo, eficazes numa certa fusão social, mas estéreis na produção de novos modelos culturais, de novas visões do mundo, de grandes obras.

O multiculturalismo é tradicionalmente fonte de segregação e de opressão cultural. Cada comunidade vive separada da outra, os comportamentos sociais tipificam-se (não se podem dizer ou fazer certas coisas porque podem humilhar outras comunidades, por exemplo). O sentido de humor baixa francamente de nível. O chiste contra o Islão era tão comum quanto o chiste contra o cristianismo na nossa cultura. O primeiro encontra-se hoje oprimido. O segundo tornou-se apenas grosseiro. As estrelas de David impostas aos judeus são obra de países multiculturais como a Espanha medieval das três religiões ou a Inglaterra normanda. E sempre que há descontentamento social são os sectores minoritários das populações que são oprimidos. Os turcos convertendo à força europeus eslavos com os janízaros, massacrando arménios e assírios, por exemplo. Ao contrário do que se diz, a pacificação social é a excepção nos regimes multiculturais. A regra é a tensão, a humilhação das minorias oscilando com fenómenos de moda e sucessos que geram ressentimentos contra elas.

O multiculturalismo é exactamente o oposto da diversidade. Num sistema de diversidade existe uma cultura comum e variantes dessa mesma cultura. Entre os gregos Homero e Hesíodo, a religião em comum, Safo e Píndaro. Na Europa a Bíblia e a herança clássica greco-romana, os Padres da Igreja (São João Crisóstomo, São Gregório Nanzianzo, São João Damasceno são lidos da Hispânia até à Rússia). Mais tarde Descartes, Galileu, Leibniz, Voltaire, Tolstoi, Goethe, Kant, Mozart ou Bach. As igrejas e os palácios são comuns, os estilos partilhados. Existe uma cultura comum e variantes dessa mesma cultura comum. No multiculturalismo passa-se exactamente o contrário. Não existe nenhuma cultura comum, salvo a política. O que une na Ásia o árabe ao turco é apenas a dominação política. Quando o árabe se separa do turco quase nada fica da cultura turca nos países árabes. O eslavo liberta-se do turco e larga a sua língua, a sua religião, os seus valores, a que nunca aderiu e apenas se sentiu forçado a aceitar.

O multiculturalismo desemboca da uniformidade. Se todo o mundo for multicultural, como pretendem os «generosos» defensores do multiculturalismo, estar em Paris, Londres ou Xangai é a mesma coisa. Todo o mundo igualmente multicultural, a paisagem monótona, sem diferenças. Porque no fundo é o que querem os cultores do multiculturalismo, mesmo que disso não tenham consciência: a uniformização. Sentindo-se aflitos com a diversidade profunda, preferem um mundo apaziguadoramente igual em toda a parte, sem que as diferenças culturais tenham de ser realmente compreendidas ou vividas.

Isto porque o multiculturalismo gera a incomunicação. O multiculturalismo baseia-se no mínimo denominador comum. Com ele, as pessoas não ficam a conhecer em profundidade as outras culturas. As experiências multiculturais demonstram que não é nesses espaços que o budismo melhor conheceu o hinduísmo ou o judeu o muçulmano, o muçulmano o cristão. Da mesma forma que o aristocrata podia, pelo menos em certos lugares e épocas, conviver diariamente com o plebeu sem lhe conhecer os problemas, a alma e a cultura, no espaço multicultural cada um comunica com outra cultura apenas no espaço da neutralidade, do amorfo: o negócio, o trabalho, o festivo. O profundo, o real, o afectivo transforma-se em mero folclore. O aristocrata dança danças populares por graça. O cristão vai ao Bar Mitzvha mas continua sem perceber nada do judaísmo. As outras culturas são coisa que estão ali, postadas, apenas postadas. Na melhor das hipóteses. Porque a pior é a de tornarem-se socialmente irritantes. O multiculturalista vê o resto do mundo ou como folclore ou como irritação.

A variedade turística é mais divertida no curto prazo, mas menos compensadora que a variedade real da vida. E essa encontra-se na diversidade, ou seja, no que não é visível. E quando escavamos a Europa bem fundo, encontramos o parentesco com a Índia, a Pérsia, o Curdistão. E sobretudo encontramos este maravilhoso organismo que é a Europa, tão cansado de si mesmo, mas rico como nenhuma planta o foi jamais. Se se quiser, há mais diversidade na métrica clássica que no verso branco, ou melhor, na implosão de métrica. No caos, tudo é igual a si mesmo em última análise. Por isso Deus separou a terra das águas e viu que o mundo era bom. Quem não separa as águas, a longo prazo começa a perceber que o que julgava ser variedade mais não era que múltiplas formas de não se ser coisa nenhuma. Essa a minha crítica ao multiculturalismo. É quem não separa as águas, a longo prazo começa a perceber que o que julgava ser variedade mais não era que múltiplas formas de não se ser coisa nenhuma. Essa a minha crítica ao multiculturalismo.

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