Opinião
Mais sofreu Job
Sabedoria de Hollywood ensina que nunca se deve subestimar o mau gosto do público. Longe da Meca das fitas, tampouco se deve subestimar a resistência das pessoas à adversidade.
Sabedoria de Hollywood ensina que nunca se deve subestimar o mau gosto do público. Longe da Meca das fitas, tampouco se deve subestimar a resistência das pessoas à adversidade. Mesmo sem ter de chegar a casos extremos como o dos sobreviventes do avião uruguaio caído na neve e no gelo dos Andes em 1972 que durante vários dias comeram bocados de companheiros de viagem mortos no desastre. Ou ao panfleto satírico do Dr. Jonathan Swift (o das viagens de Gulliver) de 1729 recomendando a camponeses irlandeses esfomeados que vendessem os filhos pequenos aos ricos como comida.
Até ao prolongado cerco de Madrid pelas tropas de Franco durante a guerra civil espanhola de 1936-1939 supunha-se que ninguém sobreviveria muito tempo a dieta que lhe fornecesse menos de 3.000 calorias por dia. As circunstâncias do cerco ensinaram que afinal se podia sobreviver com muito menos.
Chegada a segunda guerra mundial, 1939-1945, o governo de unidade nacional do qual o conservador Winston Churchill era primeiro-ministro introduziu o racionamento no Reino Unido, onde os géneros alimentares escasseavam, com uma consequência inesperada: em doenças ligadas às condições de vida, como a tuberculose, verificaram-se melhorias espectaculares – porque até ao racionamento uma grande parte dos britânicos, a parte pobre, nunca havia comido tão bem.
Franco ganhou a guerra de Espanha, o cerco de Madrid passou a fazer parte da mitologia democrática ("Madrid que bien resistes", etc.) e ficou sem se saber como os madrilenos julgariam os seus governantes se estes a tivessem ganho. Já Churchill foi um dos grandes vencedores da segunda guerra mundial e enquanto ela durou os britânicos seguiram Winston como um só homem. Mal a guerra acabou, porém, correram com ele e elegeram um governo trabalhista.
Grandes crises são mistérios; só se sabe que se bateu no fundo quando se começa a vir ao de cima outra vez. Entretanto dá jeito ter chefes capazes. Churchill sabia de guerras (tinha combatido a cavalo contra os afegãos no fim do século XIX; nas trincheiras de França contra os alemães na guerra de 14) e sabia falar aos seus. Mandava neles porque era um deles. A quem lhe disse que se batia como um leão, respondeu que o leão era o povo britânico, ele era só o rugido. Prometeu sangue, suor e lágrimas, mas não pediu mais sacrifícios do que os precisos para acabar com a Alemanha nazi e continuou a estimular o gosto das coisas boas da vida. Sem tentar consolar ninguém dizendo que mais sofreu Job.
Para ganhar guerras são precisos chefes à altura e esse é um dos problemas da Europa de hoje. Talvez devido a muito tempo seguido de paz, não se dá por eles. Com sorte, aparecerão. Sem sorte, a desgraça das dívidas soberanas não terá fim à vista. Mas vá lá saber-se. Na África do Sul, depois de meio século de apartheid, vieram De Klerk e Mandela; na Jugoslávia, depois de meio século de comunismo, vieram Milosevic e Tudjman. A História não é ciência e o vento sopra onde quer.
Embaixador
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira, excepcionalmente é publicada hoje
Até ao prolongado cerco de Madrid pelas tropas de Franco durante a guerra civil espanhola de 1936-1939 supunha-se que ninguém sobreviveria muito tempo a dieta que lhe fornecesse menos de 3.000 calorias por dia. As circunstâncias do cerco ensinaram que afinal se podia sobreviver com muito menos.
Franco ganhou a guerra de Espanha, o cerco de Madrid passou a fazer parte da mitologia democrática ("Madrid que bien resistes", etc.) e ficou sem se saber como os madrilenos julgariam os seus governantes se estes a tivessem ganho. Já Churchill foi um dos grandes vencedores da segunda guerra mundial e enquanto ela durou os britânicos seguiram Winston como um só homem. Mal a guerra acabou, porém, correram com ele e elegeram um governo trabalhista.
Grandes crises são mistérios; só se sabe que se bateu no fundo quando se começa a vir ao de cima outra vez. Entretanto dá jeito ter chefes capazes. Churchill sabia de guerras (tinha combatido a cavalo contra os afegãos no fim do século XIX; nas trincheiras de França contra os alemães na guerra de 14) e sabia falar aos seus. Mandava neles porque era um deles. A quem lhe disse que se batia como um leão, respondeu que o leão era o povo britânico, ele era só o rugido. Prometeu sangue, suor e lágrimas, mas não pediu mais sacrifícios do que os precisos para acabar com a Alemanha nazi e continuou a estimular o gosto das coisas boas da vida. Sem tentar consolar ninguém dizendo que mais sofreu Job.
Para ganhar guerras são precisos chefes à altura e esse é um dos problemas da Europa de hoje. Talvez devido a muito tempo seguido de paz, não se dá por eles. Com sorte, aparecerão. Sem sorte, a desgraça das dívidas soberanas não terá fim à vista. Mas vá lá saber-se. Na África do Sul, depois de meio século de apartheid, vieram De Klerk e Mandela; na Jugoslávia, depois de meio século de comunismo, vieram Milosevic e Tudjman. A História não é ciência e o vento sopra onde quer.
Embaixador
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira, excepcionalmente é publicada hoje
Mais artigos do Autor
Clausewitz às avessas
27.11.2013
"Douce France"
20.11.2013
Mediocridade
14.11.2013
Defesa europeia
06.11.2013
Espionagem, maneiras e bom senso
30.10.2013
O pequeno país
23.10.2013