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30 de Outubro de 2013 às 00:01

Espionagem, maneiras e bom senso

Historiar o que poderia ter acontecido em vez do que aconteceu é especulação fútil, mas se a URSS tivesse ganho a Guerra Fria (houve alturas em que tal pareceu possível) hoje as gravações das nossas conversas não estariam armazenadas num descampado do Utah, mas algures entre os Urais e Vladivostok.

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A espionagem é tão antiga quanto a humanidade e a história fez-lhe o que faz a tudo: modernizou-a. Qualquer país que se preze manda funcionários patriotas espiar outros países; sabe que os outros fazem o mesmo e sabe que se tiver o azar de ser apanhado a espiar amigos deixa toda a gente mal disposta e é obrigado a pôr orelhas de burro. No caso da N.S.A., porém, "big is ugly": o desplante americano foi enorme e escandaliza. A etiqueta - sem maneiras não haveria vida em sociedade - exige lustrações rituais que limem arestas, recordem defesos e restaurem bom senso a pecadores e a ofendidos. São para isso as conversas requeridas a Obama por Hollande e Merkel. Merkel, de resto, que cada vez mais se afirma como o maior – o único? – estadista europeu dos nossos dias, já foi clara: contra o que espíritos inocentes demais ou tortuosos demais têm reclamado, não haverá interrupção das negociações em curso para um grande acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos (que aumentaria o PIB europeu de 0,5%). A Senhora distingue o importante do acessório.


Chegámos onde estamos porque os Estados Unidos ficaram a única superpotência – hiperpotência, chamou-lhes Hubert Védrine. Tinha havido duas, mas a União Soviética perdera a Guerra Fria e colapsara. Historiar o que poderia ter acontecido em vez do que aconteceu é especulação fútil, mas se a URSS tivesse ganho a Guerra Fria (houve alturas em que tal pareceu possível) hoje as gravações das nossas conversas não estariam armazenadas num descampado do Utah, mas algures entre os Urais e Vladivostok. E, a olhar por elas e por nós, os cornacas do paquiderme tecnológico não seriam Barack Obama e a tradição democrática americana, mas Vladimir Putin (ou pior ainda) e a tradição autocrática muscovita. Quem creia em Deus que lhe dê Graças.

Por isso, evocar o KGB, a Stasi, o Nazismo e totalitarismos em geral a propósito das tropelias da N.S.A. é não só não perceber nada do mundo, mas também ajudar ‘objectivamente’ – como diziam os comunistas – os inimigos da liberdade e da democracia.

Post Scriptum – "Depressing…" mandou-me dizer por e-mail amiga, estrangeirada como eu, a propósito do Bloco-Notas da semana passada sobre azares lusitanos. Talvez não. Cada sítio tem as suas tradições: em 1875, Eça de Queiroz referia-se assim a Portugal, na última frase de "O Crime do Padre Amaro": "Pátria para sempre passada, memória quase perdida". Em 1934, Fernando Pessoa rimou: "Nem rei nem lei/Nem paz nem guerra/Define com perfil e ser/Este fulgor baço de terra/Que é Portugal a entristecer/Brilho sem luz e sem arder/Como que o fogo-fátuo encerra". A seguir a mocidade lá foi, cantando e rindo, depois deixou-se embalar nos amanhãs que cantam e agora é tão moderna como a de S. Francisco ou a de Fez. Tal Fénix, ressuscitamos sempre ou então temos vocação de moribundo perpétuo. Seja como for já estamos habituados (como dizia a cozinheira, das lagostas metidas vivas na água a ferver).

* Embaixador

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