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Livros de férias

Esta é a altura do ano em que muitos portugueses finalmente pegam num livro. Não sei se para além de pegar neles todos os lêem, mas pelo menos aparentam apreciar a sua companhia.

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Digo isto a julgar pela atenção que na época estival jornais e revistas dedicam ao objecto, dando conselhos, elaborando listagens, promovendo sucessos ao ponto de o tornarem num acessório indispensável nas férias. Um livro fica sempre bem entre toalhas, pentes, óculos escuros, protectores solares e outros cremes, ainda que não raras vezes saia todo besuntado do exercício. E, caso seja de facto folheado, para além disso cheio de areia.

É claro que quem gosta realmente de ler não precisa das férias para o fazer. Mas nesta matéria todas as desculpas me parecem boas. Ao que cabe acrescentar, antes das demais considerações, que se pode perfeitamente ser feliz e boa pessoa sem nunca ter lido um livro. Neste assunto, como noutros, o moralismo é inócuo.

Posto isto admito que gosto de ler e muito. Desde muito novo, durante todo o ano e em todas as circunstâncias apropriadas. Tive aliás a sorte de viver num ambiente familiar que favoreceu a precocidade. Quando entrei na escola primária, enquanto os outros miúdos andavam no aeiou já eu lia os títulos dos jornais. Depois devorei muita banda desenhada e, naquela época, as aventuras dos cinco. O vício era tal que partilhando o quarto com um primo, e portanto sujeito ao recolher obrigatório, tinha uma pequena pilha com a qual continuava a ler noite adentro por debaixo dos lençóis. Boa parte dos meus proventos da altura, a magra semanada, era gasta em pilhas.

Mas o primeiro livro «sério» que li deu-me literalmente a volta ao miolo. Devo confessar que o escolhi por uma razão muito pragmática. Tendo tomado a decisão de dar esse passo em direcção ao universo dos adultos e portanto esperando uma estopada, procurei na biblioteca lá de casa um livro fininho e com uma capa sugestiva. Calhou-me a Metamorfose do Kafka. Foi um choque que muito contribuiu para a minha formação, em particular a artística.

Nunca, até então, tinha experimentado a excelência da imaginação. A coisa, para quem não conhece, começa assim: «numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto». A história, kafkiana claro está, prossegue com as trágicas peripécias de um Samsa metamorfoseado em barata social.

Depois disso as aventuras dos cinco tornaram-se pueris. E não mais deixei de gostar dos livros «sérios e difíceis», tanto romances como acima de tudo os do campo das ideias.

Ler é pois para alguns de nós um prazer maior. E ao contrário do que tantas vezes se imagina, nestas coisas dos prazeres não há exclusão, só adição. Nunca se perde tempo a ler, porque todas as restantes actividades se enriquecem com essas leituras. A propósito lembro que se dizia que com o aparecimento da Internet os livros iam acabar. Ora a realidade demonstra que, pelo contrário, os livros são cada vez mais importantes. E mais úteis. Entre outras coisas fornecem pontos de vista originais no meio da imensa dispersão informacional. Ler, qualquer coisa, é em si uma boa massagem mental, muito distinta de todas as outras que nos são hoje oferecidas em particular por toda a panóplia digital e audiovisual.

Talvez por defeito de pensamento vejo nisto um princípio natural. Uma regra simples da vida e sua evolução. Certas formas atingem um tal grau de eficácia que praticamente não mudam, mesmo ao longo de muito largos períodos de tempo e ainda que sujeitos a grandes variações ambientais. Já não falo das bactérias que tanto admiro, mas por exemplo dos crocodilos que são praticamente iguais há 200 milhões de anos.

Claro está que o livro não resistirá tanto tempo, nem a espécie humana já que estamos aí, mas que se trata de um objecto singular e perfeito isso é uma evidência. É altamente ergonómico, muito adaptativo e de uma impressionante diversidade. Num livro cabem os mais simples e os mais complexos pensamentos do mundo. As mais fascinantes histórias do passado e as mais ousadas visões do futuro. Paixões e mundaneidades. Dignidade e vis baixezas. Não há nada que se possa imaginar que não possa ser descrito num livro, mesmo se algumas coisas são mais fielmente experimentadas por meio das imagens ou das sensações directas. Mas mesmo aí o livro está antes e muitas das vezes também está depois. Enfim o livro é uma das maiores realizações do génio humano. A cidade e a ciência são as outras aliás intimamente ligadas à primeira.

Por fim pode parecer que este elogio exprime uma vontade de resistência ao tempo contemporâneo, nesse asco pelas tecnologias tão típico de certos artistas e intelectuais. Será um erro de apreciação. Não vejo os livros como objectos do passado, nem como arcaísmos românticos, mas como companheiros maiores de uma história de conhecimento e criatividade. Quando partirem para a colonização espacial muitos homens vão levar livros na sua bagagem. Nem que seja para ler nas férias galácticas.

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