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Juiz em causa própria

A confiança na justiça só regressará quando os magistrados, para lá da toga, revelarem serem também competentes e totalmente dedicados à causa pública e à democracia.

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Ponhamos a questão no plano pessoal. Sempre muito subjectivo, mas pelo menos autêntico porque vivido. Vários membros da minha família foram presos por se oporem ao fascismo. O meu avô mais de vinte anos porque se envolveu num atentado contra Salazar, o meu pai por ser do Partido Comunista, outros tios e primos simplesmente por serem do contra, como então se dizia. Alguns deles foram a julgamento. E claro está condenados por uma magistratura fantoche que se dispunha a fazer o jogo sujo do regime.

Dessa experiência da juventude ficou-me uma certa desconfiança face a polícias e magistrados. O que me levou a inverter, nestes casos, o princípio que sigo em todas as minhas relações pessoais. Acredito sempre na bondade e honestidade das pessoas até prova em contrário. Com polícias e magistrados procedo de forma diversa. Primeiro quero ver provas de que são pessoas decentes, civilizados e cidadãos de um regime livre, tolerante e democrático.

Até hoje só estive uma vez num tribunal. Fui recentemente testemunha abonatória num processo de lã caprina. Quando entrei na exígua sala o juiz não se dignou sequer levantar os olhos da papelada. Não me cumprimentou e questionou-me de forma ríspida, arrogante e absolutamente desproporcionada face ao assunto em questão. Afinal tratou-se de dizer que conhecia o arguido e que o achava boa pessoa. Coisa que pensava e ainda hoje penso. E que o tribunal também considerou pois acabou absolvido.

Dito isto reconheço que tenho uma visão algo afectada para poder julgar com total isenção o comportamento da magistratura na guerra corporativa que abriu contra o governo. Vejo um excesso de tiques arrogantes e uma agressividade que frequentemente ultrapassa os limites da boa educação.

Tenho também dificuldade em perceber o que realmente está em causa. Pois umas vezes se fala de questões meramente sindicais, como os serviços de saúde ou as férias, e logo a seguir se entra no domínio do serviço público com a denúncia das más condições das instalações ou o excesso de processos. Raramente ouço os magistrados falar do cidadão. Aquele que realmente é mais prejudicado pelo mau funcionamento e lentidão da justiça. Ou do país, que muito perde em não ter uma justiça eficaz e célere.

Mas há, pelo menos, uma coisa que me chocou realmente, muito para além dos preconceitos que possa ter. A queixa que o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Cluny, apresentou ao Relator Especial das Nações Unidas para a Independência do Poder Judicial, parece-me ser muito mais do que um simples deslize infantil. Tratou-se de exportar para a cena internacional uma escaramuça local. Sem preocupação em prejudicar a imagem do país. Equiparar uma alteração do estatuto sócio-económico da magistratura com o controle político da justiça é uma ofensa à democracia e aos portugueses. Demonstra, para além disso, que estamos perante uma classe que não olha a meios, mesmo os mais controversos, tão-só para manter algumas regalias e um estatuto particular. Não é aceitável.

Julgo que os magistrados confundem o seu legítimo desejo de reconhecimento social, com a etiqueta, o cargo e a posição institucional. Esperam vénias onde deviam receber admiração. Reproduzem assim o pior de uma sociedade que valoriza em excesso a distinção classista, esse domínio formalista dos senhores doutores, com os seus salamaleques e desprezo pelo comum do cidadão. Vivemos hoje num mundo exigente onde não basta o título. É preciso demonstrar a qualidade e a capacidade efectiva para exercer cargos e missões. A honra já não se recebe em herança, conquista-se na acção. Ora é precisamente neste ponto que a magistratura portuguesa não tem apresentado provas. Se é verdade que muita coisa que funciona mal é determinada por deficiências estruturais, falta de dinheiro ou mau aproveitamento do mesmo, não é menos verdade que a má imagem da justiça se deve acima de tudo ao comportamento dos próprios magistrados. Decisões onde falta o mais trivial do bom senso, atropelos e inaceitáveis erros legais, clamorosa incompetência profissional.

A má imagem da justiça é obra da própria justiça. Não vale a pena continuar a atirar a culpa para terceiros, esse hábito tão português, sejam eles o governo, os deputados ou a classe política em geral.

A confiança na justiça só regressará quando os magistrados, para lá da toga, revelarem serem também competentes e totalmente dedicados à causa pública e à democracia.

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