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05 de Julho de 2006 às 13:59

Franceses e ingleses

Para o homem da rua (se Deus o pôs aí lá terá tido as Suas razões), existe uma fixação na querela entre ingleses e franceses, como dois pólos opostos da visão europeia.

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Os franceses e ingleses seriam como o gato e o cão das historietas infantis em perpétua querela. Vejamos até que ponto isto corresponde à verdade ou é mero folclore. Se o folclore em si mesmo não releva como visão correcta do mundo, no entanto pode ser importante para se perceber, não o que efectivamente está em jogo na construção europeia, mas como se orienta o homem da rua em relação a essa construção.

A França e a Inglaterra têm projectos europeus bem diversos. Não é estranho. Nenhum país coincide plenamente com o outro no seu projecto europeu. E nesta matéria não é, numa perspectiva de longo prazo, o Reino Unido que é maioritário, mas a França.

O curioso é que a França e a Inglaterra são dois países com Histórias interligadas profundamente. A língua inglesa é a mais francesa das línguas depois do francês. Segundo os linguistas entre 40% a 60% da língua inglesa é de origem francesa. Para os ingleses seria impossível sequer falar sem a marca francesa. Os latinos semi-alfabetizados não percebem que o inglês lhes é muito mais perceptível exactamente por causa dessa marca francesa. Desde conceitos abstractos, ao sentimento, de gosto, jurídicos e técnicos, todos eles estão cheios dessa marca. Ninguém diria «makable», mas «possible» e no entanto seria bem mais anglo-saxónico dizer a primeira que a segunda.

O reino inglês é formado por uma dinastia franco-normanda e o sonho inglês desde sempre foi a presença e o domínio da França. Entre o século XII e o XV, mas simbolicamente até ao XVIII as pretensões inglesas à França são bem conhecidas.

Inversamente se a cultura inglesa tem prestígio na Europa deve-o aos franceses do século XVIII quanto à ciência, ao regime político, à legislação, à filosofia e aos do século XIX quanto à literatura. Se alemães se anteciparam na literatura e de seguida na filosofia, a França, como centro cultural da Europa na época, foi quem deu carta de nobreza à cultura inglesa na Europa. No século XVI, Shakespeare é influenciado pela História e pela cultura francesas e só no fim do XVIII a cultura francesa se deixa imbuir de Shakespeare.

Mas, por debaixo das irritações perenes,a verdade é que a França e a Inglaterra são os mais longos aliados de que há memória na História europeia. Contra os Habsburgos em todo o século XVI e XVII (apesar de variantes ligadas aos Stuarts que não há tempo de referir). Depois da guerra franco-prussiana os alemães, engordados com as indemnizações francesas de guerra, dirigiram-se ao Banco de Inglaterra oferecendo o seu excesso de liquidez. Os ingleses responderam-lhe com desdém aristocrático perante o novo-rico, porque credível para eles era apenas a banca francesa. Com a Restauração, a Monarquia de Julho, o II Império, a III República, a I Guerra Mundial e até à crise do Suez nos anos de 1950 encontramos um período de cerca de 150 anos em que franceses e ingleses lutam do mesmo lado, são os principais aliados. Porque, lembro mais uma vez, um aliado é o que, podendo dizer não, diz sim quando tratamos do fundamental. E tendo a França e a Inglaterra dito muitas vezes não uma à outra, disseram sempre sim no que era fundamental.

Os cultores do folclore falam da aliança luso-britânica como a mais antiga do mundo. Falaria antes eu de protectorado. Perguntaram-se os ingleses: «Temos de fazer guerra contra X, temos por isso de perguntar aos portugueses se vêm connosco?» Seria ridículo termos essa presunção. Alianças fazem-se entre iguais em poder, ou pelo menos equivalentes. Os ingleses e franceses foram os principais aliados uns dos outros pelo mais longo período da História que se conhece. Ainda hoje em dia quando uns e outros pensam fazer um porta-aviões extra é entre eles que o pensam fazer. Quando fazem um Concorde é entre eles que o fazem.

Mas seria esconder o sol com a peneira ignorar que desde o fim da II Guerra Mundial que a aliança se começou a partir. A França e a Alemanha são hoje aliados mais profundos que estes e a Inglaterra. E isto mais uma vez independentemente de episódios e variações conjunturais.

O que é de estranhar nem é tanto que haja projectos diferentes, mas que no longo prazo tenha a França mais sucesso nas realizações e a Inglaterra muito mais sucesso na imagem. A vitória britânica é de relações públicas. É muito mais comum ver pessoas a falar sobre a arrogância francesa, quando é a Inglaterra a patrocinar regimes de directórios dos grandes países. É significativo que a Inglaterra tenha boa imprensa, quando, sobretudo no caso português, em nada tenha contribuído para a democracia portuguesa, e desde meados do século XVII trate Portugal como um mero protectorado na Europa.

A Inglaterra tem na segunda metade do século XX apenas duas realizações: a Commonwealth e a EFTA. A primeira organização sem presença de poder no mundo, lassa, frouxa, e a segunda tão boa que dois anos depois estavam a querer dela sair para entrarem na CEE. A França tem no seu activo a fundação da CEE e a política internacional mais independente da História desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Sob o ponto de vista de glória é bem mais significativo.

Que as realizações sejam menos importantes que as relações públicas mostra apenas e mais uma vez a falta de lucidez da nossa época, a sua menoridade. São os mesmos portugueses que vejo contar histórias em que ingleses desprezam Portugal («Se Portugal entrou na Europa, também os turcos podem entrar», ouvi mais de um inglês dizer, ou então: «Os polacos já cá estão, porque não o Azerbeijão?»), que de seguida dizem que os franceses são arrogantes e dizem preferir os ingleses. Paradoxo só na aparência. Estão habituados a serem desprezados, isso não os afecta. A arrogância genérica (mesmo que ficta) indigna-os mais que um desprezo a eles dirigido. Carentes, aceitam qualquer espécie de atenção, mesmo que de desprezo.

Que as realizações sejam menos importantes que a imagem, mostra a agrura de um mundo cada vez menos substantivo e mais imagético. Quando a realidade mais não é que um conjunto de fantasias é natural que o espírito poético esteja pobre. Homero, Dante e Chateaubriand surgem em mundos muito intensamente reais em que a realidade invade na sua força a vida interior de cada qual. É ela que impulsiona o símbolo. Mas quando a vida quotidiana é apenas um caldo de símbolos, imagens e insubstantivas presenças, nem sobra espaço para a realidade nem para a diferenciação. A polémica entre ingleses e franceses tal como a época a transmite é apenas mais um dos sintomas da infantilização do espaço público. Uma entre muitas outras.

Até porque, como veremos sobre o futuro inglês, os lugares comuns perderam a sua pertinência. Na imaginação mais ou menos difusa, e no discurso ainda presente, os ingleses conservadores opõem-se aos franceses revolucionários. Burke contra os jacobinos. Os direitos adquiridos, a tradição contra a revolução. No entanto, se olharmos bem, vemos que hoje em dia as posições se inverteram. É a França hoje em dia o paladino dos direitos adquiridos (de uma classe média maioritária, mas não menos privilegiada por isso), da tradição (republicana, social, intervencionista, protectora), contra uma Inglaterra que, se ainda não é revolucionária, como os Estados Unidos, se encontra numa fase Voltairiana. Voltaire está hoje do lado britânico: iconoclasta, descrente de grandes projectos, de grandeza, da transcendência. Campanha de demolição, mais que de construção. Burke está em França, com tudo o que tem de grande e nobre de tradição, mas esquecendo as suas ineficiências.

As imagens feitas sobre a França e a Inglaterra mostram as desgraças pessoais em que se tornam vidas de pessoas sem conhecimento histórico. Papagueiam sem compreender, desconhecem o que sejam tendências, não vêem o quadro geral. A sua vida é repetição de padrões usados e, mesmo que o sapato não lhes sirva, querem forçar o príncipe da verdade a casar com eles. Cinderelas frustradas, a História transformá-las-á em bolotas.

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