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Opinião
22 de Agosto de 2006 às 13:59

Erros e segredos

Quando, num mero exercício de especulação, tento imaginar um homem sem segredos, só consigo conceber duas alternativas: tratar-se-ia de alguém com uma vida de tal maneira desinteressante que ...

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Quando, num mero exercício de especulação, tento imaginar um homem sem segredos, só consigo conceber duas alternativas: tratar-se-ia de alguém com uma vida de tal maneira desinteressante que nada escondesse por falta do que esconder ou seria um fundamentalista da verdade, com toda a arrogância e intolerância que isso implica, com um dedo sempre pronto para apontar as faltas dos outros, um ser incapaz de amizade, de compaixão ou de amor, intratável, perigoso e mau.

Mas, como essa pessoa não existe (espero eu), quem é que tem autoridade para condenar o escritor Günter Grass por ter esperado 60 anos para revelar que, quando era puto, fez a grande asneira de tomar os maus por bons e integrar as SS? E com que base é que se dá o salto e se acusa esse que é tido como o maior escritor alemão vivo, detentor de um Nobel e de toda a correspondente notoriedade, de, aos 78 anos de idade, pretender promover o seu mais novo livro às custas da revelação de um episódio estigmatizante e vergonhoso da sua própria vida? A acusação é gravíssima e acusações gravíssimas só devem ser feitas quando os indícios são veementes. E quem acusa não os apresenta. Trata-se de mera ilação cuja confirmação implicaria no cumprimento das piores pré-condições sobre o carácter do escritor alemão.

Não está aqui ninguém a dizer que Günter Grass seja um santo impoluto. Errou quando entrou para as SS, e errou quando omitiu o erro - e maior fica o erro quando se considera que boa parte da sua obra é precisamente sobre o erro ( eu a apontar os erros de Günter Grass! É tão fácil apontar os erros quando os erros são dos outros). Mas convinha que desistíssemos de uma vez por todas de encontrar criaturas perfeitas, e que nos convencêssemos de que não é por serem imperfeitos (ou mesmo defeituosos) que os artistas deixam de ter o que nos dizer. A condenação de Günter Grass pode ser - e n’alguns casos será, com certeza - hipócrita, mas também haverá pessoas de bem que, cheias de bons sentimentos, o condenem. O mal de que padecem é uma certa infantilidade - acreditam na bondade pura e simples e não admitem a bondade que não seja pura e cuja complexidade inclua erros, desvios, eventualmente maldades, hesitações, vergonhas, fraquezas e segredos. A essas pessoas convinha que prestassem atenção à complexidade da maldade, que, tal como a da bondade, pode incluir o seu contrário.

Aos 17 anos é desculpável que se acredite na pureza simples da bondade e da maldade. À medida em que o tempo passa, o equívoco vai ficando mais grave. Até porque não é por serem ambas complexas e contaminadas uma pela outra que deixam, uma, de ser boa e a outra, má.

PS: Pura e simples é a constatação de que o estacionamento em cima do passeio é covarde, abusivo, egoísta, mau.

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