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Opinião
27 de Abril de 2005 às 13:59

Engenharia histórica

Só um tonto não vê que está a cair da árvore, sem vontade própria, sem História, e sem futuro. E como não tem futuro não o quer para os outros, ou não concebe que os outros o queiram ter.

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Suponho que todos nós cometemos de vez em quando o erro de conversar com as pessoas erradas sem tomar precauções de tradução. Passou-se comigo uma vez que falava com um alto funcionário. Dizia eu que a Europa cometia o vício costumeiro de fazer engenharia histórica ao resignar-se à adesão da Turquia. A resposta que obtive foi: «Ah, mas a Turquia tem bonitos monumentos de engenharia histórica».

Como o bom-senso é a coisa mais bem distribuída no mundo, como dizia Descartes, tão distribuída que se encontra em cada qual em meras doses homeopáticas, necessito de precisar o conceito que ora uso. Engenharia histórica significa pretender moldar directamente a História, trabalhar directamente sobre a massa histórica.

Como se faz? Pretendendo que a massa histórica, a matéria da História, é directamente apreensível. A única forma de o fazer é reduzir esta matéria a conceitos técnicos, manipuláveis.

A engenharia histórica é uma grandeza e um podre da Europa. Tem, e mais uma vez, origens pagãs e cristãs. Eneias é o autor do novo começo, de uma vida que começa de novo, seja num novo lugar, seja num novo modo de vida. A ideia da América do Norte é uma das herdeiras europeias deste novo começo. Não é Ulisses que retorna à pátria, mas Eneias que se forja uma nova. O cristianismo, por outro lado, com o conceito de metanoia, de conversão, visa a transformação radical do homem, porque conversão mais não é que isso. Que redunda na divinização do homem, como os ortodoxos orientais bem salientam.

Como grandeza sustenta-se apenas tendo contrapesos. Ulisses volta à pátria, é o oposto de Eneias. E a conversão é tornar-se criança, é retornar à fonte da criação, ao amor, ou seja a si mesmo.

Criticaram-se muito as igrejas cristãs ao santificarem antigos lugares e tempos (Carnaval, por exemplo) sagrados dos pagãos. Viu-se esse facto com condescendência. Mas esse o seu verdadeiro sinal de grandeza. Da mesma forma, cada colónia grega nova, cada novo começo, tinha como passo obrigatório a transmissão do fogo sagrado da cidade-mãe. Todo o novo começo leva consigo as raízes, e é voltar às raízes.

Começar de novo sem voltar a si mesmo é assim o lado podre da sede de manipulação europeia.

A época contemporânea foi rica nesta ânsia de novos começos sem retorno. Com resultados desastrosos.O nazismo volta a um passado que nunca existiu, o comunismo forja um futuro que nunca nos foi prometido. Inventa-se um passado sempre que não se quer ou não se pode a ele dirigir. E inquina-se irrevogavelmente o futuro.

A Europa fez engenharia histórica em África no século XIX e a primeira metade do XX. Não deixou a democracia, mas apenas o cristianismo. Deixou fronteiras artificiais, uma concepção de Estado postiça em África, com as bem conhecidas guerras que isso gerou. Depois, através da Rússia, impôs o comunismo em países africanos, mas também da Ásia. Países que saíram de sistemas que não conheceram nem o regime de liberdades europeu, nem o cristianismo, nem contrapesos. O resultado foi apenas o envernizamento de despotismos tradicionais com nova linguagem de dominação. A China, por exemplo, Estado sério sob o ponto de vista político, mas ideologicamente uma palhaçada, em que de comunismo resta a ditadura (oriental) e no resto se torna mais capitalista que os capitalistas.

Quanto aos resultados, a engenharia histórica apenas os produziu nefastos. Modelo necessário em certos casos, como forma de sair de impasses civilizacionais, por vezes gerando uma maior justiça social relativa, mas com efeitos menos produtivos que países que não a fizeram e com muito maiores custos. Na melhor das hipóteses, e na medida em que tenha ido para a frente, apenas gerou espaços de desconforto identitário. A França laica que se reconcilia aos poucos com o catolicismo desde a I e sobretudo a II Guerra mundial, consegue absorver alguns dos efeitos negativos desta engenharia. A I República portuguesa igualmente. Ou em países asiáticos: a Turquia ou países turcófonos, que constroem identidades artificiais ao ponto de uns se considerarem laicos quando financiam fundamentalistas islâmicos e se considerarem europeus quando nunca o foram.

Quanto ao método, ele é simples.É um «apenas» imposto à História, empobrecendo a realidade do quotidiano das pessoas. O homem é «só» económico (capitalismo, comunismo), a Europa é «apenas» democracia, direitos do homem, economia de mercado e «acquis communautaire». Mais nada há que saber. O «apenas» é técnico, e por isso manipulável, meramente argumentativo, ficando no campo do, esse sim, «apenas» dizível.

O problema é que o essencial não é dizível, todos os poetas, religiosos, artistas e mesmo muitos cientistas o reconheceram. O essencial, o que faz a nossa identidade, o que nos cria um projecto de vida é sempre, em última análise, indizível. Porque escolhemos uma profissão? Porque gostamos dela? E porque não gostamos dela? Porque queremos viver confortavelmente? E porque queremos nós viver confortavelmente? As perguntas parecem esvair-se na filosofia barata, mas é através delas que se chega ao que é realmente importante. Mesmo que o simples facto de as colocarmos não nos leve lá.

Sentemo-nos um pouco e vejamos a relevância do que digo. Acabo por falar em poetas, em religiosos e artistas, quando em boa verdade tratamos de coisas sérias como a política. Que desasada perspectiva a minha. Pois, realmente... só na aparência. É que a obra que fica é sempre da dos poucos que conseguiram expressar ou encarar o essencial. Seja por evocação, seja por um traço de pintura, seja por um trecho musical, ou uma equação.

Na política, sobram os que de alguma forma incarnaram esse indizível, e que por ele foram movidos.

Hoje em dia vemos diplomatas, analistas políticos, jornalistas, opinarem sobre o que é a Europa, e as infinitas compensações estratégicas (nunca claramente enunciadas, em bom rigor) de termos a Turquia, Marrocos, Israel, um dia o Kasaquistão, na União Europeia. São esses os cultores actuais da engenharia histórica. Querem converter, querem um novo começo. Herdeiros serôdios e mal digeridos de um cristianismo e de um paganismo que nunca assimilaram plenamente, querem reduzi-lo a meras expressões técnicas. Curiosamente são em geral pessoas que ou vivem ou viveram nos Estados Unidos. O arquiduque Otão de Habsburgo percebeu que era europeu quando se teve de refugiar na América. Estes burgueses, indo para lá, ainda não se aperceberam que não o eram em suficiência.

Mais uma vez: apenas trabalham no curto prazo, a sua visão é meramente técnica. E eu confio num técnico para me mudar um pneu, nem sempre para me aconselhar em decisões fundamentais da minha vida, mas sobretudo, nunca para as tomar por mim. A isso chama-se liberdade. E mais uma vez, quem anda pela vida como folha tonta sujeita a qualquer rabanada de vento, quer tiranizar os outros. Mostra a sua imensa sabedoria técnica, o seu domínio mais ou menos fortuito da palavra. Mas só um tonto não vê que está a cair da árvore, sem vontade própria, sem História, e sem futuro. E como não tem futuro não o quer para os outros, ou não concebe que os outros o queiram ter.

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