Opinião
Eça não diria ser paisagem
São Martinho de Anta não é o Chiado nem Coimbra é Paris. A urze transmontana a que foi buscar o nome dá-se mal com os salões e com as tertúlias. Apesar de tudo, apesar das diferenças e das distâncias, ...
Apesar de tudo, apesar das diferenças e das distâncias, Eça nunca diria de Torga ser uma espécie de paisagem. Porque Eça, sobre ser muito inteligente, era culto e erudito. Detinha a cultura e usava a erudição para perceber o que era importante. Ocorre que, apesar da sua paixão pública por Eça, a ministra da Cultura não percebeu nada.
Coloquemos as coisas no registo devido. O registo devido não ancora em gostar ou não gostar de Torga. Não reside em achar que o homem, o cidadão ou o médico tinham este ou aquele defeito. O registo devido invoca e convoca um grande escritor. Ponto. De dimensão nacional. Ponto. Que deixa uma obra proposta três vezes para o Nobel da Literatura. Ponto. E que teve, ao longo da vida de escritor, a noção exacta da portugalidade, sem inventar nem inventariar prognósticos de integração do país no país vizinho. Foi este homem que, sobre a morte de Fernando Pessoa, escreveu: “Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”. Mal ele sabia como estava a ser premonitório em causa própria. A “silly season” anestesia qualquer um. Mesmo assim, no caso vertente, não consegue vendar um olhar fulminante nem calar uma voz de protesto perante a indigência que, com a sua ausência das comemorações do centenário do escritor, a ministra deu provas e testemunho. Claro que, quando se deu conta, instruiu provavelmente o seu secretário de Estado a desculpar o próprio Estado. Foi patético. Manifestou a sua indignação pela indignação e, cândido, foi dizendo que o governo tinha já estado presente numas quantas iniciativas em honra do escritor entretanto ocorridas e que estaria noutras a ocorrer. Foi como dizer que esteve presente em quase todos os ensaios da ópera e espera vir a estar nuns quantos “encore” a pedido. Mas falhou a estreia. Não pôs lá os pés. O governo não foi lá, não aplaudiu politicamente a iniciativa e pouco parece importar-se com isso. Mas com isto, na esteira de outros comportamentos anteriores, a ministra da Cultura revelou um peculiar sentido de Estado. Eça teria escrito sobre ela. E não seria simpático.
Há nesta ausência, por mais voltas que lhe tentem dar, uma postura que vai da pura negligência a uma atitude de soberba para com o passado. Pode ter sido esquecimento, agendas pessoais (de todos ao mesmo tempo?), uma viagem a lugares exóticos (ou várias), o calor de Coimbra em Agosto, a maçada de lá ir, o que quiserem que seja por mera negligência. É revelador. Ou pode ter sido o constatar que Torga era “rural” por contraponto aos “maîtres penseurs”, que era de um passado triste português por confronto com as luzes das ribaltas estrangeiras. É revelador. Em ambos os casos revelador de umas emergências mal escondidas e no último caso revelador de uma total e flagrante injustiça para com quem sempre foi um insubmisso num país de submissos.
É por estas e por outras que os socialistas são muitas vezes conotados com um registo de riqueza nova. De uma riqueza ostentatória, quando se toma o poder. De falta de reconhecimento por tudo aquilo que não foi feito por eles próprios quando chegados ao poder. De soberba e de arrogância. Pode até ser injusto para com eles, mas como eles próprios sabem, melhor que ninguém pelo modo como sabem disfarçar, em política o que parece é.
Torga chamou a Portugal uma “nesga de terra debruada de mar”. Uma “nesga de terra” e com esta ministra uma nesga de reconhecimento e uma nesga de aplauso por tudo o que fez pelas letras portuguesas. Imperdoável.