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16 de Março de 2005 às 13:59

É a Turquia um país europeu?

O facto de os europeus não reconhecerem os turcos como europeus não demonstra antes que os europeus são racistas?

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De todas as perguntas que me lembrasse de fazer, esta é das mais risíveis. Que viva numa época que sequer a faça já me parece triste. Que viva numa época em que desprovidos até ao mais alto nível – fiquemo-nos por esta expressão – digam que é, ou que tem ser, começa a preocupar-me.

Não me vou sequer ocupar do problema da adesão da Turquia à União Europeia. Essa matéria está noutras núpcias. Apenas gostava que quem me lesse reflectisse um pouco sobre o dislate que se diz impunemente a propósito.

Um país é europeu pela geografia, pela demografia, mas sobretudo pela cultura. O argumento que se adianta com frequência é que não se pode definir o que seja a Europa. E aí dou total razão a quem o diz. Mas isto é verdade também para os Estados Unidos, para a Turquia ou para outro país extra-europeu. Porque uma cultura forma um tipo e não um conceito. Os conceitos definem-se, os tipos delimitam-se. O que seja uma casa típica alentejana não se define, apenas se delimita, porque é um tipo. Mas não é por isso que deixam de existir casas típicas alentejanas. Qualquer pessoa com elementares conhecimentos de lógica sabe o que isto significa.

Cristianismo e paganismo indo-europeu sobre um substrato diverso formam a Europa. Direi isto até que a voz dos outros lhes doa. Mas não é isso que me vai preocupar. Apenas me interessa enunciar agora o que permite identificar uma cultura, e o que faz com que uma outra não lhe pertença. Em suma, o que é Europa e porque a Turquia não é nem nunca foi Europa.

Há muitos índices que nos permitem identificar uma cultura. Vejamos alguns.

O casamento, para começar. Exemplo ridículo, pode-se dizer. Esquecem no entanto que o casamento é os elementos mais estáveis de identificação que há. Quem acha que o casamento não tem valor de identificação concordará porventura que pessoas se casem com cães? Ou com mesas?A polémica sobre o casamento dos homossexuais, numa sociedade que se pretende livre de qualquer discriminação, mostra os limites de identificação. Durante séculos, pessoas de classes diferentes não se podiam casar entre si, ou só o faziam de forma constrangida. Pessoas de raças ou religiões diversas igualmente. Hoje em dia os historiadores, por influência da antropologia, já não entendem os casamentos das classes dominantes como algo de folclórico, mas como uma estrutura que diz muito sobre a identidade de uma sociedade. Ora com quem se casam as classes dominantes na Europa? Com outras casas dominantes na Europa. Um pequeno reino como Portugal deu várias imperatrizes e a maior duquesa da Borgonha de sempre. Com quem se casam os filhos dos sultões? As filhas dos sultões eram boas para casar com reis? Nem sequer com baronetes, ou escudeiros.

Em anedota, alguns turcos lembram venezianas que fugiram para Constantinopla e caíram nos braços do sultão. É verdade. Umas aventureiras, que em vez de verem o seu prestígio aumentado eram chamadas de «putane del Turco». Lembro que em italiano «putana» não quer dizer princesa.

Outro critério é o dos movimentos comuns de cultura. Em períodos diversos toda a Europa teve românico, gótico, renascença, barroco, rococó, neoclassicismo, romantismo e assim por diante. As partes da Europa que não passaram por estas etapas estavam dominadas pelos turcos e libertas do seu jugo seguiram os movimentos então vigentes. No caso da Rússia, desde a autonomia em relação aos tártaros (começou no fim do século XIV com Dimitri Donskoï, mas consolidou-se no século XVI) para fazer o Kremlin vão-se buscar artistas italianos. E desde o século XVIII entra de pleno no movimento europeu. Não encontramos nada disto na Turquia.

Um terceiro critério para ver a identificação vê-se nos sentimentos comuns. Quando Constantinopla cai nas mãos dos turcos toda a Europa gritou de asco. Não falo de alianças políticas. Francisco I aliou-se aos turcos. Mas isso apenas fez com que fosse condenado pelo resto da Europa e, quando apoiado, apenas com algum constrangimento pelos franceses. Toda a Europa faz cruzadas num período de tempo de cerca de quatro séculos ou mais, desde a cruzada na Palestina, até à vitória de Dimitri Donskoï contra os tártaros em 1380. Se quisermos até Lepanto no século XVI, até ao cerco de Viena pelos turcos no século XVII.

Um quarto critério é a informação, os bens que circulam em comum. Em Lisboa e Moscovo lêem-se Tolstoï, Dostoievski, Goethe, Dante, Haydn e tantos outros circularam por toda a Europa, por si ou pelas suas obras. Nenhum turco ficou na História por nos ter influenciado. E se nós influenciámos os turcos, se eles nos imitam, o mesmo se diga dos japoneses, ou indianos. Tivemos mais influências indianas ou chinesas que turcas e ninguém se lembra de fazer entrar estes na Europa.

Outro ainda é o da autoria. A Rússia só é considerada plenamente europeia quando começa a produzir autores e deixa de ser apenas fruidora e imitadora da cultura europeia. Sem Mendeleev ou Mussorgski dificilmente veríamos os russos como europeus. Já vi turcos dizerem que há turcos nas óperas de Mozart. Mas há também japoneses e chineses e americanos nas de Puccini. São eles europeus? Não é o objecto, mas o autor que define uma cultura.

Os ciclos políticos são outro critério. Os movimentos liberais, as revoltas da jacqueries na Idade Média, a barbarização, a feudalidade, em graus diversos atravessaram toda a Europa. Não a Turquia. Os ciclos políticos da Turquia são os da Ásia Central, sobretudo desde o fim do século XIX. Laicização, turquização e islamização vão de par no Turquestão russo e na Turquia.

O que não gera identificação? Instituições formais comuns, alianças, acordos políticos. Consoante as épocas a França, a Inglaterra, a Alemanha aliaram-se à Turquia.

O Japão tem instituições de origem europeia, códigos civis e penais herdados da Europa. Isso em nada lhe deu um estatuto europeu. São aliás são demasiado sãos para se presumirem europeus. Alianças foram feitas entre a Alemanha de Guilherme II e a Turquia, entre os Estados Unidos e a União Soviética, entre a Arménia e o Irão. Nenhum destes países se identificou com o outro por isso. Acordos políticos existiram e de longo prazo entre ao império romano e o império parto e de tal forma isto não gerou identificação nenhuma que para a maioria dos europeus o império romano é coisa que existe, mas o parto é nome de que nem ouviram falar.

Apenas falei de indícios, mas entremos agora no centro da identificação. Qual o mecanismo pelo qual ela se manifesta? Pelo mútuo reconhecimento. Um filho não se pergunta a todo o momento se o pai copulou com a sua mãe. Reconhece o pai como pai e este reconhece o outro como filho. Um português reconhece um português, um brasileiro um brasileiro. Que os turcos queiram ser europeus só demonstra que não se reconhecem como tal. Que os europeus não os reconheçam e nunca os tenham reconhecido como europeus, é a prova cabal desse facto.

Assentemos um pouco ideias porque adivinho um piscar de olho do leitor. É verdade, mas o facto de os europeus não reconhecerem os turcos como europeus não demonstra antes que os europeus são racistas? Pois muito bem, se assim for o brasileiro que reconhecer alguém como português é racista, um egípcio que reconhece um europeu é racista, um chinês que reconhece um angolano é racista. E chamar os europeus de racistas, se os turcos fossem europeus, não seria também chamar de racistas os turcos quando se consideram europeus? Ou será que são os únicos europeus que não são racistas?

Não reconhecer alguém como seu porque não participou de instituições de identificação como o casamento, dos mesmos movimentos culturais, dos mesmos sentimentos comuns, das mesmas ideias e bens culturais, das mesmas fontes, que não tenha contribuído com a sua autoria para a nossa cultura, que tenha ciclos políticos totalmente opostos, ciclos de vida bem diferentes... Não reconhecer é neste caso acto de racismo?

Admitamos. Temos mesmo que admitir, tendo em conta tanto desprovido que o diz. Seja. Mas temos de os perdoar. São os mesmos que andam nas ruas a chamar de Mãe à primeira patega que lhes aparece à frente, de filho ao candeeiro que encontram ao virar da esquina, de amigo ao caixote de lixo público, de igual ao pessegueiro a que atiram dardos. Mas eu que comecei com a lógica tenho de terminar por aqui. É que desembocámos na psiquiatria. E dessa matéria outros tratarão melhor que eu. Mesmo que não curem.

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