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20 de Agosto de 2020 às 20:27

E quando formos nós?

O que revolta é ser preciso existir uma pandemia para Portugal descobrir o que se passa em vários lares deste país. Não tenho nenhuma dúvida de que a maneira como uma sociedade trata os seus mais idosos é um critério supremo para se avaliar o nível dessa comunidade.

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O que se tem sabido sobre as condições do lar de Reguengos, a ser verdade, é uma tristeza.

Sabem qual é o problema? Como eu disse numa intervenção, num congresso partidário, em 2014, o problema está em as pessoas não pararem para pensar o que sentiriam se estivessem no lugar dos outros.

Há muitos anos que exprimo publicamente a minha revolta com o modelo dos lares-depósito. Fi-lo muito antes de ser provedor da Santa Casa ou mesmo antes de ser presidente de duas câmaras municipais. Num programa de televisão, em 1996, com Alexandra Lencastre e Alexandra Leite, quando perguntado sobre o que faria se me saísse o Euromilhões ou tivesse poder, respondi que faria tudo o que pudesse para acabar com esse horror.

Durante seis anos na Santa Casa procurei firmar o princípio da intergeracionalidade e, em consequência, desenvolver equipamentos sociais à luz dessa orientação. Tal como apoiei e dei toda a força ao desenvolvimento e implantação real da figura do cuidador familiar.

Não despertei agora para a importância desse tema nem para a gravidade dessa situação. Nem falo do assunto para alimentar críticas à ministra da Segurança Social. Pode ter sido um título descontextualizado ou ter tido uma frase infeliz. Tenho muitos anos de entrevistas e de títulos para saber qual é a sensação de incredulidade depois de uma conversa de horas sobre temas sérios, chegar-nos o jornal no dia e ficarmos espantados com um título. Não é por aí que julgo um ministro. E não tenho nenhuma dúvida da imensidão de trabalho que deve ter numa situação como aquela que vivemos.

O que revolta é ser preciso existir uma pandemia para Portugal descobrir o que se passa em vários lares deste país. Não tenho nenhuma dúvida de que a maneira como uma sociedade trata os seus mais idosos é um critério supremo para se avaliar o nível dessa comunidade. Repito: cada um que pare para pensar e que pergunte a si próprio: quando chegar a essa fase da vida, gostaria de ir parar a um desses sítios?

Um dia, em 2013, fui visitar a Mitra. Tinha estado décadas na Segurança Social e passara para a Santa Casa um ano antes. Nem queria acreditar no que encontrei. Não era muito diferente de algumas situações que tenho lido a propósito do lar de Reguengos. Mandei mudar tudo: lavar, desinfetar, comprar roupa de cama e edredons novos, reforçar o quadro de eletricidade para aguentar aquecedores e televisões em todos os quartos; dei ordens para irem todos aos dentistas da Santa Casa, para se arranjarem e, só um detalhe, dei ordem expressa para lhes levarem bolos das melhores pastelarias pelo menos uma vez por semana. A Mitra nunca mais foi a mesma com muitos projetos e intervenções abrindo o espaço à cidade. Nunca me hei de esquecer de uma senhora que estava sempre a fumar dando saltos de canguru. Miséria humana.

Fizemos também um programa de animação dos lares – Encontros com Música – levando lá artistas portugueses que, como agora, estavam sem trabalho. Desse modo, com músicos de todas as idades e de todos os géneros musicais, alegrávamos alguns dias dessas pessoas e víamos sorrisos e boa-disposição nas suas expressões.

Se há setor que precisa de mudança, inovação, imaginação, é este. Não se põe em causa toda a dedicação e a capacidade de milhares de pessoas que trabalham nestas instituições. Está fora de questão. Mas essa não pode ser a frase com que se seca a conversa e a indignação sobre este tema.

Cada partido e cada pessoa dá mais valor ao que entende. Por mim, a solidariedade social tem de estar sempre na primeira linha. A pergunta tem de ser sempre a mesma: e quando formos nós? Queremos ir?

Não falo nisto por ter 64 anos, hoje em dia, meia-idade. Já falo há muitos anos. Falo e luto por isso. E agora que vem a tal maré de dinheiro é mais uma oportunidade de se pôr cobro a essa vergonha.

 

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