O mundo não passa de uma enorme caixa de ressonância. O ruído sobrepõe-se a tudo, à História e à verdade. As palavras são de Laura, protagonista do novo livro do escritor David Machado. Chama-se precisamente "Os Dias do Ruído" e levanta questões sobre feminismo, racismo, xenofobia e extremismos. Fala-nos sobretudo sobre a fragilidade do ser humano num mundo ditado pelas redes sociais. Autor dos romances "Deixem Falar as Pedras, "Índice Médio de Felicidade" (Prémio da União Europeia para a Literatura), "Debaixo da Pele" e "A Educação dos Gafanhotos", David Machado publicou também vários contos e livros para crianças. O próximo chama-se "Nós" e faz parte da coleção de livros ilustrados da Assembleia da República a propósito dos 50 anos do 25 de Abril.
* Entrevista publicada originalmente a 18 de outubro de 2024
No livro, a protagonista Laura conta que, ao pesquisar "female heroes" no Google, os primeiros resultados que aparecem são nomes de atrizes, estilistas, apresentadoras de televisão. Fala numa confusão entre "heroína" e alguém que mudou o mundo…
Na maior parte das vezes, quando pensamos em mulheres heroínas, imaginamos figuras famosas ou com um protagonismo diferente de um "herói homem", geralmente associado a atos de bravura e coragem. Em muitos casos, uma "mulher heroína" é simplesmente alguém que se distinguiu em determinada área. Mas nada disto é simples; há nuances. O que me interessa, ao escrever literatura, é sobretudo refletir sobre algumas questões, sem intenção de chegar a uma conclusão, nem espero que o leitor o faça ao ler o meu romance.
Foi difícil escrever no feminino?
O protagonista não tinha de ser uma mulher, mas uma mulher reforçaria ainda mais a natureza absurda de uma situação em que alguém se torna famoso por matar uma pessoa. Vivemos numa época em que é possível as pessoas tornarem-se famosas por qualquer coisa – e até por nada. Apesar de haver um excesso de juízos morais sobre tudo, há formas de contornar esse juízo e de sermos reconhecidos pelas coisas mais bizarras e condenáveis, inclusivamente por matar – que é o pináculo desta ideia. Gostaria de pensar que tudo isto é um absurdo, e é, mas, num mundo dominado pelas redes sociais, onde milhões de vozes falam ao mesmo tempo, a confusão e a dissonância são constantes, e às tantas é tudo ruído.
O ruído sobrepõe-se a tudo, "à História e à verdade"?
Em muitos casos, sim. É difícil chegar à verdade, nada é imediato, quase tudo é incompleto e superficial, resultante de uma gritaria de várias opiniões sem contexto – falta-nos muito contexto. Sabemos que as redes sociais dão sobretudo voz aos extremos e que nada é aprofundado. De algum modo, o mundo perdeu profundidade. Evoluímos tanto a vários níveis, mas depois contentamo-nos com observações superficiais. Tudo pode coexistir, claro. Podemos ver vídeos no YouTube para aprender algo, seja uma receita de cozinha, seja um vídeo sobre o Estado Novo, o problema é ficarmos apenas pela rama de tudo. No final da semana, nem sequer nos lembramos dos vídeos que vimos.
Os avanços tecnológicos, de alguma forma, afastam-nos da nossa humanidade?
Os avanços eletrónicos e digitais são, em grande medida, antinaturais em relação àquilo que somos originalmente. Por exemplo, o tempo que já vivemos com eletricidade é um instante comparado com os milhares de anos em que vivemos sem eletricidade, e a nossa carga genética foi moldada por esse longo período. Sempre que inventamos uma ferramenta que nos permite fazer algo sem ter de executar determinado gesto, acabamos por perder esse gesto. É verdade que o ser humano está sempre a evoluir e não tem de ficar agarrado a gestos antigos, mas a mudança tem sido muito abrupta. E o nosso corpo não está preparado para, por exemplo, ficar tanto tempo sentado. Não tivemos anos suficientes para nos adaptarmos a essa sedentarização. É contra a nossa natureza. Nessa medida, podemos dizer que a tecnologia nos afasta da nossa humanidade.
O corpo não está a acompanhar a velocidade tecnológica?
A evolução das espécies demora milhares de anos. Muitas vezes, não percebemos o que nos leva a sentir de determinada forma, qual a razão para termos uma dor ou para estarmos tristes, e isso tem também que ver com a maneira como o nosso corpo foi formatado, que não se adequa a este modelo.
Os sobreviventes da transformação tecnológica serão aqueles que naturalmente, nas suas cabeças, antropomorfizam o algoritmo, como refere a protagonista do livro?
Tendemos a antropomorfizar tudo. Quando nos referimos ao algoritmo, dizemos "ele" ou "ela" (a Alexa e a Siri, por exemplo). O marketing das empresas de inteligência artificial é eficaz. Funcionamos melhor quando sentimos que há ali um "ser" cognoscente, com personalidade, quase vivo. Temos tendência para achar que o algoritmo é, assim, um ser pensante e que por isso é capaz de nos manipular. Mas o algoritmo não manipula nada, segue apenas uma pré-programação e vai aprendendo de acordo com essa programação. Por enquanto, não existe nenhuma máquina maquiavélica a querer manipular-nos.
Há sempre uma tendência para atribuirmos emoções às coisas?
É um equívoco pensar que a inteligência emocional quer dominar o mundo. A IA não tem intenção de nada. Mas funcionamos melhor se acreditarmos que há uma intenção moral e emocional por trás de tudo. Falamos assim do universo ou da natureza – referimo-nos, por exemplo, à "mãe natureza" como se fosse uma personagem. Ou seja, os seres humanos precisam de narrativas. É por isso que, apesar de tudo, a literatura continua a funcionar bem. Da mesma forma, funcionamos melhor se imaginarmos que o algoritmo é uma personagem com uma intenção, que há ali uma causa e consequência, ação e reação, como nos filmes de Hollywood. A narrativa é para nós muito importante; estamos sempre a contar histórias uns aos outros – tudo o que contamos são pequenas histórias.
E não há nada mais humano que isso.
É verdade. As histórias ajudam-nos a dar sentido às coisas.
Contar histórias foi um desejo desde cedo?
Foi através do cinema que percebi a importância das histórias. Sempre vi muitos filmes em casa e costumava ir com o meu pai ao Alfa, ao Londres, ao São Jorge, ao King. O meu avô também gostava e costumava gravar imensos filmes. Ele tinha uma loja onde vendia material audiovisual e conhecia pessoas das distribuidoras e até alguns realizadores, e também por isso tinha esse gosto. Vi com o meu avô todos aqueles filmes de cowboys e clássicos como o "Ben-Hur". Eu gostava sobretudo de perceber as dinâmicas da narrativa, as costuras por trás de tudo. E a narrativa não é uma história, é a forma como se conta a história – podemos contar uma história de muitas maneiras diferentes.
Nunca pensou em seguir a linguagem do cinema?
A dada altura, ponderei mudar de Economia para o curso de Cinema. Mas não aconteceu. Em Portugal, o meio cinematográfico é pequeno e não tem dinheiro. Custa-me escrever sem saber se aquilo que estou a escrever vai ser produzido. Se alguém vier ter comigo com uma proposta, geralmente aceito – estou agora a trabalhar numa curta e numa série, e há uns anos adaptei, com o Tiago Santos, o "Índice Médio de Felicidade", por sugestão do realizador Tim Navarro. Estou aberto a propostas. Mas é muito mais apelativo escrever um livro infantil, sabendo que estará nas livrarias daqui a cerca de nove meses.
O que mais o atrai nos livros infantis?
É poder passar rapidamente para outro projeto. Eu gosto de ir atrás das ideias. Não gosto tanto de estar mais de um ano a trabalhar no mesmo livro. Na realidade, comecei a escrever "Os Dias do Ruído" há uns anos, poucos meses antes da pandemia, mas parei assim que a pandemia começou. Todos os escritores que conheço pararam de escrever o que estavam a escrever; nada parecia fazer sentido face ao que estávamos a viver. Parei e escrevi muitas outras coisas nos dois anos seguintes: um romance juvenil, um livro de rimas para crianças, contos infantis. Só voltei a pegar neste livro no final de 2022.
É difícil estar debruçado muito tempo debruçado sobre a mesma coisa?
Sim, e os livros infantis permitem uma maior experimentação. Posso escrever livros que são uma história, ou que são apenas uma lista de coisas, ou um livro de rimas, ou um diálogo que é só um diálogo. Além disso, escrever para crianças é muito mais divertido! É mais divertido quando estou a escrever e é mais divertido depois de escrever, nas idas às escolas e às bibliotecas, por exemplo. As sessões com as crianças são mais engraçadas, as perguntas são giras, elas riem-se e eu rio-me. E posso improvisar muito mais. Não há na literatura infantil o pretensiosismo que muitas vezes há na literatura para adultos.
Mas, em Portugal, a literatura infantil ocupa pouco espaço…
A literatura infantil está pouco presente na sociedade portuguesa. Não há crítica, nem notícias, nem festivais, e quase não há prémios literários para livros já publicados. Um jovem entre os 20 e 30 anos não considera a literatura infantil como um caminho. Este género já foi uma referência nos anos 1980 e 1990, mas hoje não conseguimos identificar uma nova geração de autores de literatura infantil com menos de 40 anos.
Considera-se um escritor de literatura infantil, mais do que tudo?
Considero-me também um romancista. Acho que sou as duas coisas. Para mim, a literatura infantil é uma bênção, algo que nunca pensei fazer. Quando comecei a escrever, concorri ao Prémio Branquinho da Fonseca com o conto infantil "A Noite dos Animais Inventados", que acabou por ser premiado. Mas, nos anos a seguintes, eu nem sabia bem o que estava a fazer, ia escrevendo por instinto, que é a melhor maneira de o fazer. Na escrita de um romance, sou mais racional e se calhar deveria ser menos. Na escrita para crianças, estou só a escrever aquilo que me apetece escrever.
A economia ficou para trás. Nunca exerceu?
Trabalhei um ano no INE num departamento que estudava a população de empresas em Portugal, envolvia uma base de dados com milhares de entradas, e gostei bastante. Mas, na altura, em 2002/2003, o meu contrato não era contrato, estive lá apenas um ano e, mal fiquei sem fazer nada, entediei-me e decidi começar a escrever todos os dias. Ao fim de uns meses, não queria parar a escrita, já não tinha vontade de procurar emprego na área de economia, e fui arranjando uns trabalhos à medida que também escrevia. Cheguei a trabalhar numa fábrica de montagem de computadores na Holanda, e foi uma experiência incrível. Havia gente de todo o mundo: argentinos, vietnamitas, senegaleses, italianos, ucranianos. Depois andei a viajar pelos Balcãs e regressei a Portugal quase um ano depois.
Viver da escrita é possível?
Publiquei o primeiro livro em 2006, mas, durante dois anos, mantive outros trabalhos. Até escrevi alguns fascículos do Planeta De Agostini, com textos de enquadramento sobre os anos 1980. Escrevi sobre o cubo mágico, sobre o Gorbatchov e sobre México 86! Fui fazendo outras coisas, porque, em Portugal, com um livro, ninguém vai a lado nenhum. Tive sorte muita sorte, a minha mulher tem um emprego estável e bem pago, e aguentou o barco muito tempo. Sem ela não teria sido possível fazer as coisas da maneira que fiz. Também ajudou o facto de em 2015 ter recebido o Prémio da União Europeia para a Literatura com o "Índice Médio de Felicidade", que me permitiu ter obras traduzidas em várias línguas, e de ter publicado muitos livros ao longo do tempo.
Os jovens estão a comprar mais livros, aponta o estudo "Mercado do Livro e Hábitos de Compra em Portugal", e, curiosamente, as redes sociais têm contribuído para esse aumento de vendas...
É ótimo que isso esteja a acontecer, e de uma forma tão inesperada – estávamos todos a olhar para o sítio errado. No entanto, há uma tendência para essas páginas falarem quase exclusivamente sobre um género de livros, o que acaba por afunilar a escolha. Aconteceu o mesmo com o cinema: os filmes de super-heróis são os únicos que vingam, porque as únicas pessoas que vão cinema são os miúdos entre os 15 e os 25 anos. Mesmo hoje, as salas passam filmes de super-heróis ou cinema de autor, e não existe um meio-termo. Não há filmes de família, como o E.T., nem comédias românticas. Estamos a satisfazer apenas a vontade do público, sem deixar espaço para o público ser surpreendido. Isso também está a acontecer na literatura, e é preciso cuidado, não devemos guiar-nos apenas pelos comentários nas páginas de Instagram e de TikTok. Algumas editoras já nem vão às feiras de Frankfurt, não ouvem os agentes literários, não leem as críticas no El País, no Guardian ou no New York Times; vão apenas ver os gostos das páginas das redes sociais.