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14 de Novembro de 2008 às 13:00

Da crise financeira à crise económica

Passou já mais de um mês desde que os governos da União Europeia e dos Estados Unidos (entre outros) anunciaram um conjunto abrangente de medidas de estabilização do sector financeiro. Estas incluíram compromissos significativos das contas públicas, sobretudo a partir do reforço do capital das instituições financeiras,...

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Estas incluíram compromissos significativos das contas públicas, sobretudo a partir do reforço do capital das instituições financeiras, da prestação de garantias públicas para as emissões de dívida dos bancos e da aquisição de activos ilíquidos (ou "tóxicos") nos seus balanços. Algumas estimativas sugerem que o valor global destes compromissos públicos atinge já cerca de 15% do PIB nos Estados Unidos e um pouco mais de 20% do PIB na Zona Euro (é importante frisar que estes montantes não se reflectirão na sua totalidade em aumentos de dívida pública e, muito menos, em aumentos de défices orçamentais; haverá um reflexo na dívida pública no caso de aumentos de capital ou de aquisição de activos; o respectivo impacto no défice será, em primeiro lugar, indirecto, por via do aumento dos encargos com os juros da nova dívida; mas poderá até vir a ser positivo se, mais tarde, os activos agora adquiridos forem vendidos a um preço superior; já as garantias – que correspondem à maior parcela destes compromissos – apenas teriam impacto nas contas públicas no caso de serem accionadas).

A estes compromissos orçamentais, juntam-se ainda as fortes injecções de liquidez por parte dos bancos centrais. Por exemplo, o financiamento concedido pela Reserva Federal americana aumentou cerca de 90% no mês de Outubro e atingiu já cerca de 1.8 biliões de dólares, perto de 13% do PIB americano. Na Zona Euro, a provisão de liquidez por parte do BCE aumentou cerca de 60% naquele mês, atingindo perto de 750 mil milhões de euros, ou cerca de 8% do PIB.

Estas intervenções públicas massivas tiveram o mérito de estabilizar os mercados monetário e de crédito, levando à descida dos juros de mercado de curto prazo e a uma correcção dos spreads de crédito, a partir dos níveis anormalmente elevados do início de Outubro. Ao mesmo tempo, instalou-se a percepção de que mais nenhuma instituição financeira seria deixada cair como a Lehman Brothers. Neste sentido, apesar de os mercados monetário e de crédito estarem ainda longe da normalidade (a disponibilidade de cedência de liquidez e de crédito é ainda muito reduzida), é possível dizer que o pior terá já passado no que respeita, especificamente, aos riscos de colapso do sistema financeiro internacional.

Dito isto, duas ideias são cada vez mais claras. Em primeiro lugar, as ondas de choque da crise financeira estão ainda por se fazer sentir, na sua plenitude, sobre a economia real. Isto implica que 2009 será um ano muito difícil ao nível do crescimento e do emprego nas principais economias. Em segundo lugar, o clima de extrema aversão ao risco e a previsível debilidade da procura privada, devendo resultar num aumento do desemprego geral dos recursos e até num eventual risco de deflação, justificam neste momento um papel ainda mais activo – no sentido expansionista – das políticas monetária e orçamental.

A suportar a primeira ideia está a expectativa de 2009 vir a ser marcado por um ambiente mais restritivo ao nível do financiamento da actividade económica real. Os resultados mais recentes do inquérito ao mercado do crédito levado a cabo pelo BCE (de Outubro) revelam que 65% dos bancos da Zona Euro restringiram os critérios de financiamento às empresas (43% em Julho), citando – para além das dificuldades de funding dos próprios bancos – as perspectivas negativas para a actividade real (e, portanto, os receios de deterioração da qualidade do crédito). Em relação aos empréstimos às famílias, 36% dos bancos reportaram a adopção de critérios de concessão de crédito mais restritivos. Nos Estados Unidos, um inquérito semelhante mostrou que 84% dos bancos pretende aumentar a restritividade do crédito às empresas no 4º trimestre. Em suma, uma maior aversão ao risco e um financiamento mais difícil deverão determinar uma liquidez menos fluida e ampla e um desempenho desfavorável do consumo e investimento privados no próximo ano, condicionando o crescimento global da actividade económica. Este contexto deverá contribuir também para um aumento das dificuldades e dos defaults nas empresas com maiores níveis de endividamento.

A ausência de procura privada e a secagem da liquidez poderão, em conjunto com a descida dos preços médios anuais das matérias-primas, alimentar uma expectativa deflacionista entre os agentes económicos, reforçando os riscos para a procura (tipicamente, a deflação implica o adiamento das decisões de consumo e investimento e reflecte-se também num aumento do valor real das dívidas). Espera-se, neste contexto, uma descida agressiva dos juros de referência pelos principais bancos centrais (BCE incluído), o que será uma ajuda para famílias e empresas com dívidas. Mas, com os juros já próximos de zero, essas descidas não serão muito eficazes no estímulo à actividade económica. A política orçamental terá, assim, que assumir um maior protagonismo. Nos Estados Unidos, as primeiras indicações apontam para a vontade de a nova administração avançar não apenas com estímulos fiscais de curto prazo (como a redução de impostos sobre o rendimento das famílias), mas também com um programa abrangente de investimentos públicos em áreas como a energia, a educação ou a saúde. Algumas estimativas apontam já para a possibilidade de o défice orçamental americano mais do que duplicar em 2009, para um valor próximo de USD 1000 mil milhões, ou perto de 7% do PIB. Estímulos orçamentais deverão também ser observados na Europa (embora com menor dimensão). Se a inacção do sector privado seca a liquidez, faz todo o sentido, do ponto de vista económico, que o Estado se substitua ao sector privado realizando despesas e "re-inflacionando" a economia. No entanto, é importante que estas intervenções sejam vistas como apenas pontuais (a receita Keynesiana não é uma receita geral; ela adequa-se apenas a situações de desemprego como a que se deverá viver em 2009); e é importante que a despesa pública seja feita com critério, se possível focada em actividades que possam conduzir a uma aceleração da produtividade nas economias (para além das necessárias despesas de natureza social). Finalmente, estes compromissos públicos deverão implicar um aumento significativo das necessidades de financiamento dos Estados e, portanto, um enorme esforço de emissão de dívida pública nas principais economias. Quem tomará esta dívida? A que preço? E com que consequências para a economia mundial a médio e longo prazo? São questões em aberto, para acompanhar no futuro.

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