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Como chegámos a isto?

Depois de ter sido a representação emocional de um campo de futebol, Portugal passou a uma espécie de espaço do absurdo. Parece que tudo é permitido, desde que a apropriação das instituições, por métodos que a ética condena e a decência política despreza,

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Depois de ter sido a representação emocional de um campo de futebol, Portugal passou a uma espécie de espaço do absurdo. Parece que tudo é permitido, desde que a apropriação das instituições, por métodos que a ética condena e a decência política despreza, se tornou num fenómeno aparentemente comum e displicentemente impune. O cometimento do sr. Paulo Portas, insultando o Presidente da República, à saída do Palácio de Belém, representa um agravo seríssimo à instituição, a merecer resposta indignada da sociedade no seu todo. E indica, uma vez ainda, o que consistirá a lógica das consequências degradantes, com gente desta espécie nos centros de decisão.

Mas as coisas vêm de trás, e nada do que historicamente sucede procede da esfera da ingenuidade ou dos caprichos do acaso. Há um manifesto retrocesso no movimento político português, cujos efeitos são ainda imprevisíveis, mas que se adivinham gravíssimos. A Esquerda ainda não compreendeu que emergiu uma ruptura entre a realidade e a persuasão, entre a dialéctica como conceito de verdade, e a verdade como o exacto contrário daquilo que desejamos. A política deixou de se fazer nas assembleias: impelida pela mediatização, exerce-se cada vez mais na praça, obedecendo ao império das «mensagens» publicitárias – e nesse mercado governado pela violência «legítima» que se chama televisão.

A cartilha mais reaccionária, o projecto político mais retrógrado são tendências nada tranquilizadoras na sociedade portuguesa, que atingiram a exultação esquizofrénica com o patrioteirismo bandeiral, e a invocação de Deus a cada instante. O «Graças a Deus» e o «Se Deus quiser» entraram no discurso do poder, que das expressões se serve sem pudor, sem escrúpulo e maliciosamente. Nada disto é pacífico. O nacionalismo serôdio fez ressurgir uma ideia de país que julgávamos sepulta, e, associado a uma Direita que é a afirmação da velha consciência criptofascista, prenuncia tempos medonhos.

Portugal encontra-se numa encruzilhada; e tudo indica que, esquivada da sua natureza democrática, desaparecerá, de todo, a já ténue distinção entre Estado, Governo e sociedade civil. Não tenhamos receio das palavras: comprova-se uma relação muito estreita entre a especificidade dos regimes totalitários e as ameaças que pairam sobre nós. Forças poderosas tendem a reduzir a diversidade dos pontos de vista a uma só verdade. Muitos órgãos de Imprensa estão sob controlo. O medo instalou-se, novamente, em muitas Redacções. Jornalistas honrados são afastados de funções. Articulistas que arriscam a opinião, não os comentadores do óbvio, são preteridos por pessoas que não incomodam porque não problematizam. A manipulação deixou de ser contingente para se converter numa evidência. Até Pacheco Pereira já advertiu dos perigos que nos espreitam.

Nunca, desde há trinta anos, a Direita e a extrema-Direita haviam desencadeado uma ofensiva tão intensa. Geralmente, as coisas confinavam-se a pequenas intrigas de gabinete, e à colocação de gente de confiança (tanto do PSD, como do CDS ou do PS) em lugares de proventos fáceis. A unidade do lugar político estava assim concertada. O mútuo ataque a outras forças de Esquerda fazia parte do palimpsestro. Porém, o PSD e o PS, associados (entre outros sombrios conúbios), naquele imenso sketch de serem partidos «interclassistas», abriram as portas a todos os oportunismos e a todos os carreiristas. A democracia não se edifica com antidemocratas. A cândida tolerância e a negligência suicida de se conceder todas as liberdades aos inimigos da liberdade – deu naquilo a que chegámos.

A Fénix renasce das cinzas do 24 de Abril.

Apostila - Acaba de sair, através da Dom Quixote (e, ainda, pela mão de Nelson de Matos), o quarto volume das «memórias» de José Gomes Ferreira, o grande poeta e prosador, que preencheu toda a segunda metade do século XX. Leva o título de «Laboratório de Cinzas» e é o reencontro com a palavra luminosa, a camaradagem, a solidariedade e a luta comum de homens íntegros, que batalharam juntos pela liberdade, pleiteando a honra, a moral e o escrúpulo como factores determinantes da alma e do carácter. Um livro encantador e, simultaneamente, pedagógico. Diz-nos, por exemplo, que, naquele tempo, os intelectuais portugueses interferiam na colectividade, protestavam e indignavam-se. Por isso mesmo, eram admirados e respeitados.

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