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14 de Setembro de 2005 às 13:59

Civilização judaico-cristã

A tontice é como um farol que nos indica onde se encontram os escolhos e os rochedos. Daí que nos ajude a levar a bom porto.

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Cada um tem as suas perversões. No meu caso, a caça de tontices. Uma tontice é sempre significativa. Da ignorância do seu autor, se é individual, da sua presunção. Mas quando é colectiva, ou seja, repetida no tempo, por vários autores, insistente, desvela um plano de fundo bem mais grave.

A tontice é como um farol que nos indica onde se encontram os escolhos e os rochedos. Daí que nos ajude a levar a bom porto.

A tontice de que agora trato é a tão propalada civilização judaico-cristã. Parece que o somos.

O que caracterizaria esta civilização judaico-cristã? Sob o ponto de vista moral, uma moral de culpa, por oposição a uma moral do prazer que supostamente os antigos teriam. Sob o ponto de vista da concepção histórica a noção de ascensão, de progresso, por oposição a uma noção cíclica da História pelos antigos.

Vejamos em primeiro lugar o que pode caracterizar uma civilização. O que a define, o que a marca, é antes do mais o poder. Para eu saber o que define uma civilização tenho de procurar quem está no poder. No poder cultural, político, económico, quem estabelece a marca, a sua tessitura. A civilização romana era romana, não por os romanos serem a maioria populacional, mas por dominarem os romanos, as suas estruturas políticas, e mesmo a sua cultura. É evidente que isto é mais verdade para o lado ocidental do império, dado que no oriental imperou a língua grega. Mas os próprios bizantinos se chamavam a si mesmos de «Romaioi», viam-se como romanos, mesmo que no século XII apenas restassem algumas palavras de origem latina no seu vocabulário. O mesmo se diga dos ditos reinos bárbaros, em que os povos assim chamados eram uma minoria dominante, mas minoria.

Ora na Europa quem manda? Judeus? Muçulmanos? Sempre que um país se considera parte da rede de relações da Europa quem o governa é um senhor cristão. As elites, a nobreza, são cristãs. O judeu é o que está fora do sistema, o homem sem terra, o homem do dinheiro, a classe média numa época sem classe média. A Europa é uma cultura judaico-cristã? Na perspectiva do poder, não.

Mas a Europa tem influências judaicas? Sim. Por via do cristianismo. Mas se o afã historicista é assim tão grande, e dado que o judaísmo é influenciado pela cultura egípcia e babilónica, porque não dizer que somos uma civilização egipcíaco-babilónico-judaico-cristã?

Continuemos. Outras influências mais poderosas que o judaísmo existem na Europa: a romana e a grega. Encontramos mais referências a Vénus que a Ester na literatura e na pintura europeias, por exemplo. As nossas instituições são mais romanas que judaicas, as nossas categorias de pensamento e gosto mais gregas que judaicas. O afã historicista, se o for, obrigar-nos-ia a dizer que somos uma civilização heleno-romano-egipcíaco-babilónico-judaico-cristã.

Mas o fundo sobre o qual agem todas estas influências é celta, germânico, italiota, eslavo, em suma, indo-europeu. Isto para além de fundos não indo-europeus que o constituem, como os iberos, etruscos, fino-ungáricos. Ou seja, a nossa civilização seria celto-germânico-italiota-eslavo-etrusco-fino-ungárico-basco-heleno-romano-egipcíaco-babilónico-judaico-cristã.

Esta simples enunciação mostra o disparate da expressão judaico-cristã. A escolha não é neutra, não é inocente. De todas as enunciações escolhe-se a judaica, não a directamente mais importante, uma designação de filiação. A escolha é política, não científica. É ideológica, não justa. Para se dizer mal, para se dizer bem, o que seja, escolhe-se a filiação judaica como determinante, quando ela já está contida no cristianismo.

Vejamos agora o conteúdo, o que caracterizaria esta civilização. A moral de culpa, por oposição à moral de prazer. É curioso como a divulgação, a massificação é sempre atrasada, um fenómeno de retardamento. Tilgher e Brochard no início do século XX já tinham feito esta oposição... para serem rapidamente atacados por toda a erudição clássica logo nos anos 1920 pelo menos. Mondolfo, Jaeger, Dodds, Cornford ou Heidegger nunca disseram estes disparates. Moral de prazer a moral clássica? Como explicar então o pouco prestígio do epicurismo, dos sibaritas, dos cirenaicos durante a época antiga? Lucrécia é violada por Tarquínio, conta Tito Lívio. Que faz ela? Conta ao marido a sua desonra e depois suicida-se. Se a moral antiga era de prazer a explicação seria a de Tarquínio ter péssimas prestações sexuais. Penélope espera o marido para manter a sua fidelidade. Se a moral fosse de prazer Ulisses deveria ser um campeão do sexo.

Mas inversamente, a ideia de que «culpa» é uma criação cristã é no mínimo simplista. Aparece em Séneca sem referência ao judaísmo ou ao cristianismo. Não é por acaso que Séneca é chamado por Tertuliano, de «Seneca, saepe noster» (»Séneca quase nosso, quase cristão»). É que a moral antiga foi capaz de elaborar autonomamente uma ética de culpa.

Mas vejamos outra vertente deste dislate: o desprezo do corpo, tão «cristão». A verdade é que o cristianismo é a única religião que tem como dogma de fé a ressurreição dos corpos. Por outro lado, o neoplatonismo (e Deus sabe como se opuseram aos cristãos) redundou num desprezo do corpo, num ódio do corpo contra o qual sempre se insurgiram os cristãos. Acrescentemos que a época mais repressiva sob o ponto de vista sexual foi a segunda metade do século XIX, época de afastamento do cristianismo, do seu apagamento público.

Ataquemos agora a ideia de progresso, de ascensão, como tipicamente judaico-cristã. Mais uma incoerência. Ao mesmo tempo que se fala em ascensão condena-se o cristianismo por falar na Queda (de Adão) como motor da História. Por outro lado, é temerário reduzir todo o pensamento antigo à ideia de ciclos. A mitologia fala também ela de Queda (da passagem da Idade de Ouro à do Ferro), outras vezes a filosofia fala da eternidade do mundo (Aristóteles), outras ainda da conflagração final em que o mundo morrerá (estóicos). Como critério de distinção mais uma vez é simplista. Baseia-se numa passagem de Nietzsche que assume um papel na sua filosofia muito menor que a que se lhe atribuiu.

Estamos desarmados. «Judaico-cristã» representa uma escolha arbitrária de filiações, ideológica e não científica. Os conteúdos que se lhe atribuem são incorrectos.

Já poucos eruditos se lembram do marcionismo, uma heresia condenada por todas as ortodoxias, segundo a qual haveria dois Deuses diferentes, o do Antigo e o do Novo Testamento. Falar em cristianismo é sempre assim falar na sua filiação judaica, e torna a referência ao judaísmo redundante e tendenciosa. É certo por outro lado que certo protestantismo foi mais judaizante. É verdade de outro modo que só no século XIX vemos (ditos) judeus atingirem os mais altos postos (Disraeli em Inglaterra) mas em certos países só no XX (Blum em França, Trotsky na Rússia). Como pode ser judaico-cristã uma cultura que só dá lugar aos judeus quando se torna menos cristã?

Não ignoro algumas reacções que possa provocar. Serei acusado de racismo, é bom de se ver. Mas serei racista se disser que o presidente da república portuguesa tem nulo direito ao trono de Espanha? Se ele a tal pretendesse apenas seria pretensioso. E o que releva é que a designação faz esquecer o essencial. Que a Europa é cristã e pagã indo-europeia. Mas essa é uma outra demonstração.

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