Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
31 de Outubro de 2008 às 13:00

Casa preta

Na próxima semana vai haver novo presidente dos Estados Unidos e é quase certo que esse vai ser Obama. As sondagens de sondagens e as tipo "boca das urnas" apontam para aí, e os analistas concordam que, neste ponto da campanha, a tendência actual já só poderá ser mudada por uma grande surpresa, querendo com isto referir-se a um evento fatídico, género acto terrorista (lembram-se como Zapatero ganhou, na sequela dos atentados de Madrid?)

  • 4
  • ...
Na minha visão pessoal, e para muitos, o mais relevante é a raça do candidato (1), quando até há pouco, nos EUA, predominavam os "Wasp" (2), em quase exclusividade e em quase todos os ramos onde o poder estivesse em causa. Agora, até se trata da presidência, o cargo mais poderoso do mundo e, até, arredores.

Vivi, acompanhando, todas as vicissitudes do movimento cívico afro-americano, desde há cerca de 50 anos, de modo que esta quase certa vitória tem como que um valor afectivo para este autor, neste domínio. Fui educado, como quase todos da minha geração no meu país, na idiossincrasia da igualdade entre todos, se não em méritos, seguramente em direitos e oportunidades, independentemente de raça, religião ou ideologia (excepto, evidentemente, os espanhóis, gente bera do "mau vento" ou "mau casamento"). Então, podia-se ser adversário ou até inimigo, mas isso não afectava o estatuto da igualdade entre todos, como homens (3).

Pela época em que entrei na idade de pensar com autonomia, isto não era assim, como generalidade, pelo mundo fora (aqui refiro-me ao domínio racial, porque no resto se calhar ainda era pior). E depois a Realpolitik até fazia estabelecer uma aliança clara de Portugal com o governo segregacionista da Africa do Sul (4) – a qual, no domínio geoestratégico, na perspectiva dos então governantes, fazia todo o sentido, aliás.

Lá em casa assinava-se a extinta "Vida Mundial" e mais tarde a "Time" (já com a minha mesada). Como aparecia com frequência também o "Paris Match" e as suas fotografias, eu podia-me considerar bem informado; e muito interessado.

Lembro-me perfeitamente, no tempo de Eisenhower, de como a já relativamente idosa Rosa Parks (recentemente falecida) recusou sentar-se no banco para negros do transporte público, no Alabama, e fez despoletar um motim, que afinal viria a ser o bater de asas da borboleta que desencadeia o tufão no outro lado do mundo.

Obama é filho de Rosa.

Mais tarde, pelos anos 60, sentia-se a explosão na América, e todos recordam Martin Luther King ou os Panteras Negras ou o admirável Cassius Clay ou os Kennedy ou Johnson – que avançou com a legislação e a vontade cruciais.

Vi isso, como toda a gente. Mas vi também, por uma fresta da História, para mim também afectiva, da música, do cinema e das revistas de humor, onde, por isto e por aquilo, tive um assento privilegiado:

Sabia que o explosivo "Tutti Frutti" do extraterrestre Little Richard (veja no YouTube), para poder ser um "hit" teve de ser interpretado e vendido por um lamechas, Pat Boone, dolicocéfalo loiro de voz suave? Beuh!

Ou que Hendrix, sempre inspirado ou por Deus ou pela droga, teve que vir para a Europa, e só depois reconhecido e reexportado no ano de Woodstock? E que os "Experience" de Jimmy era a banda que queimava tempo antes duns primatas adequadamente chamados "The Monkeys"?

Ou que a Sidney Poitier chamava-lhe a fantástica "Mad" o "preto simbólico" ("token black"), por ser o único admitido nos filmes de Hollywood com relevo?

Chamemos a isto o "lado leve" ou minimal da descriminação, mas, para quem tinha que sentir por dentro, constituía uma recordação quotidiana de se não estar apenas numa questão de "ter" menos, mas de "ser" menos, em todos os aspectos da vida.

Bom, isto é o que tenho de dizer à América, ansiosa por ouvir a minha palavra. Mas, o que seriamente acho é que um presidente negro constitui uma mensagem em si mesmo, obrigando todos no mundo a olhar, novamente, para o Ocidente e a sua mais desenvolvida democracia, os EUA.

(1) Internamente, candidatos centristas, ainda por cima com pouca margem de manobra devido aos grandes desequilíbrios da economia, não vão fazer grande disparidade; externamente, as diferenças já estão esbatidas no concreto (Com o Iraque meio-resolvido, até só vejo divergências mínimas ).

(2) White anglo-saxon protestant.

(3) A palavra leva água no bico, deixando-se à vontade o sentido genérico, incluindo ou não as mulheres. Se no meu microcosmos, que inclua a gente cultivada da universidade, se levava o liberalismo ao ponto de considerar que as do sexo dito fraco afinal tinham alma, também se não ia ao extremismo de as julgar tão dotadas como "nosotros", (apesar da prova em contrário, mensalmente apresentada na "Playboy"). Nem elas próprias, creio bem. Mudam-se os tempos, e a melhoria não é só a Internet, graças a Deus.

(4) É curioso, mas "White Supremacy" e "Apartheid" são conceptualmente muito diferentes, aquela ideologia sustentando a superioridade racial dos brancos, e esta pura e simplesmente defendendo o desenvolvimento separado e segregado, a fim de manter o poder na minoria, os afrikander, conservando o sistema democrático de acesso à governação.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio