Opinião
Assimetrias
O fraco crescimento da economia portuguesa nos últimos anos tem deixado bem clara a importância do consumo privado para a evolução do conjunto da economia. Na década e meia que se seguiu à adesão à UE, Portugal beneficiou de um acréscimo antes impensável
O consumo privado foi, todavia, a variável que, após a adesão, deu a maior contribuição para o crescimento, expandindo-se a 3,9% ao ano entre 1986 e 2000 e representando 65.2% do PIB em média na década de 90. A partir de 2001, a exigência de ajustamento, não só público, como privado, teve o efeito simétrico: a contribuição do investimento tornou-se negativa desde 2002 (com excepção de 2004, graças ao Euro 2004) e a do consumo privado baixou fortemente, situando-se o seu crescimento médio em 1,4% ao ano entre 2001 e 2007.
A grande diferença entre as duas variáveis reside no facto de que, enquanto se deve esperar a retoma do investimento em função da correcção dos desequilíbrios e dos ganhos de competitividade, a quebra do peso do consumo no PIB corresponde também à correcção do valor excessivo por ele atingido, devendo esperar-se que continue a expandir-se a ritmo inferior ao do PIB. Dito de outro modo, isto significa que o arranque do crescimento da economia terá de provir da retoma do sector exterior (exportações e substituição de importações) e do investimento, ele próprio muito dependente de condições conjunturais favoráveis, ou seja, de boas expectativas de crescimento do consumo privado e da procura mundial. Tal “obrigação” resulta do facto de, tanto o consumo privado como o investimento em construção, serem bons motores do emprego, mas também das importações, sem gerarem aumentos de competitividade em grau suficiente para permitir compensá-las.
Nada disto é novidade, embora muitas das reivindicações que ouvimos o ignorem, parecendo acreditar que o acréscimo de bem-estar da classe média poderia continuar a depender indefinidamente do aumento do endividamento, fosse ele do Estado, das famílias ou da banca. Muito mais surpreendente, porém, é verificarmos que os Estados Unidos se deixaram cair numa armadilha idêntica quanto ao endividamento e ao excesso de peso do consumo privado. De facto, passados alguns meses sobre o desencadear da crise das hipotecas subprime, já não é possível ignorar o efeito que ela terá sobre o consumo privado americano que, também ele, constituiu o motor da economia ao longo de vários anos, chegando ao ponto de a poupança das famílias se ter tornado negativa. Não há, por isso, hipótese de a situação se corrigir – por mais que o Fed baixe as taxas de juro – sem que o consumo se reduza. Existe, contudo, uma grande diferença relativamente a Portugal, diferença essa que é relevante para todo o mundo e que resulta do facto de o consumo privado americano não ter sido apenas o motor da economia dos Estados Unidos, mas ter desempenhado igual papel na economia mundial.
Não pode deixar de reconhecer-se que a redução do peso do consumo nos Estados Unidos é uma inevitabilidade macroeconómica e que levá-la a cabo é não só necessário, mas benéfico. É também evidente que essa redução se fará em paralelo com a queda do dólar, limitando o seu impacto no crescimento económico e no emprego americanos. Ao mesmo tempo terá que ocorrer um forte ajustamento no sistema financeiro norte-americano, cujo empolamento excedeu muito o do próprio consumo. Parece, aliás, indiscutível que o mundo terá pouco a perder se desaparecerem do sistema financeiro as inovações que apenas se destinaram a criar uma rede de instituições e instrumentos isentos de qualquer regulação ou supervisão, opacos, instáveis e, em última análise, prestando-se a um uso irresponsável, que levou à presente crise.
Tudo isso não elimina, porém, o facto de que tais evoluções vão necessariamente ter um impacto na economia mundial, provavelmente mais negativo – via quebra do dólar – que o que tiverem nos Estados Unidos. O que nos leva à questão fundamental: para que servem as instituições internacionais, em particular, o Fundo Monetário Internacional, tão rigoroso na doutrina, mas tão ineficaz quando se trata de a impor ao país que maior influência tem na economia e no sistema financeiro global? E para que servem os acordos internacionais de supervisão bancária, tão exigentes quanto aos requisitos de capital dos bancos e tão permissivos quanto à criação do que se tornou num verdadeiro sistema bancário paralelo, isento de quaisquer regras, a começar pela prestação de informação?
E uma última pergunta: será que agora a Europa conseguirá pôr-se de acordo e assumir uma posição nesta matéria mais consentânea com o seu peso na economia mundial, ou cada país continuará a defender interesses menores, deixando que, ao fim e ao cabo, os problemas sejam dirimidos entre os Estados Unidos e a China, com a presidência europeia do FMI a assistir?