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Opinião
23 de Agosto de 2005 às 13:59

As práticas políticas

A integração na Europa e na moeda única foi vista como fornecendo esse estímulo e poderá ainda fazê-lo, mas isso implica pressupostos difíceis.

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Para a Europa retomar o caminho da integração constitucional, a Zona Euro terá de retomar o caminho da prosperidade. Isso exigirá mudanças estruturais: mudanças estruturais supõem a aprovação do eleitorado; a aprovação do eleitorado supõe prosperidade. O círculo só pode ser quebrado retomando o uso pragmático dos estímulos monetários e orçamentais.


Robert A. Levine, antigo director-adjunto do Congressional Budget Office
International Herald Tribune, 8 Junho 2005

 

Argumentei, no artigo que precedeu este, que a solução dos problemas económicos do país só será possível se mudarem as práticas políticas que, ao longo dos anos, foram partilhadas por todos os agentes relevantes, desde os partidos aos parceiros sociais. Tais práticas caracterizam-se por aceitar que a decisão política seja regida pelos interesses de grupos que devem a sua capacidade negocial, ou ao estatuto político de que disfrutam (com destaque para as estruturas partidárias e para o poder regional e local), ou à capacidade de disrupção do funcionamento normal do país que lhes advém das funções que desempenham. A lei é, nesses casos, contornada ou adaptada e só se aplica na sua plenitude àqueles que não dispõem dessa capacidade negocial.

As simples mudanças legislativas são, por isso, impotentes para corrigir os problemas. Como diz o provérbio italiano, fatta la legge trovato l’inganno. Situando-se o problema na atitude perante a lei, cai-se facilmente no velho chavão que apela à mudança de mentalidades, cuja inoperância bem conhecemos. Para ela acontecer, são necessários estímulos poderosos. A integração na Europa e na moeda única foi vista como fornecendo esse estímulo e poderá ainda fazê-lo, mas isso implica pressupostos difíceis.

O primeiro consiste em percebermos o nosso papel na Europa como membros de pleno direito - e plenos deveres - mas não como um súbdito que procura obedecer aos ditames europeus apenas com vista a continuar a receber os «fundos» cuja distribuição permite manter o statu quo. Foi essa mentalidade de súbdito que as élites políticas fomentaram desde a adesão, mas é precisamente ela que justifica a fuga ao cumprimento da lei - europeia ou nacional -, sempre  com a desculpa de que «eles» fazem pior, competindo aos espertos não ficar atrás dos outros, mas não lhes competindo exigir a mudança desse comportamento. Neste clima, como afirma Tobias Jones num livro1 sobre a Itália, que também ajuda a compreender Portugal: A fuga ao cumprimento da lei é sempre desculpada pelo facto de que os políticos fazem muito pior e, ao pé deles, a nossa fuga aos impostos ou o pequeno suborno não chegam a ser importantes. E ainda: O problema não é que a lama não possa agarrar-se a qualquer pessoa. O problema é que a lama é tanta que já nem faz diferença.

Pelo nosso lado, foi este entendimento que retirou à integração na UE uma boa parte da capacidade de mudança de mentalidades que dela se esperava. Mas os problemas também vêm do lado europeu. De facto, há que reconhecer que, enquanto a Europa permanecer um deserto de crescimento, de emprego e de inovação, caracterizado pela aversão à mudança, pela regulação incoerente do grande mercado e pela deflação organizada na Zona Euro2, dela pouco pode esperar-se em matéria de estímulos positivos. Para a Zona Euro, o caminho não pode ser muito diferente do apontado por Robert Levine na citação em epígrafe. Infelizmente, esse caminho não pode aplicar-se da mesma forma a Portugal onde, dadas as práticas políticas vigentes, o estímulo monetário e/ou orçamental apenas conduz a que continue a distribuir-se mal o rendimento, sem fomentar a iniciativa capaz de o fazer crescer.

Tanto para Portugal como para a Europa há, porém, um caminho comum: o da desintoxicação ideológica, do fim do cinismo e da demagogia, da invenção da sua própria modernidade, em alternativa à cópia de modelos que lhe são alheios. Na sua base tem de estar, tanto à direita como à esquerda, aquilo a que Nicolas Baverez no artigo citado chama a «aclimatação ao liberalismo», o único antídoto para o veneno que nos paralisa. Na Europa - e, em particular, na França - ela é uma condição necessária para a aprovação do eleitorado às indispensáveis mudanças. A outra condição é o pragmatismo da gestão macroeconómica, a partir do momento em que se estabeça a confiança na seriedade dos políticos em impô-las.

Quem achar tudo isto demasiado difícil ou quimérico, pense na quimera maior que é manter as coisas como estão e nos custos infinitamente mais altos do desmembramento da Zona Euro e da UE. Como referia Martin Wolf no Financial Times3: Por maiores que sejam as dificuldades de manter a união, os custos de abandoná-la são muito maiores. Supunhamos que um país decidia abandonar o euro e recriar a sua moeda, com vista a depreciá-la, como sugeriu o turbulento ministro dos assuntos sociais italiano, Roberto Maroni. Uma depreciação desse tipo subiria o custo do stock da dívida. Um Estado altamente endividado teria que escolher entre redenominar a dívida na sua nova moeda ou declarar a bancarrota. Qualquer das alternativas daria origem a uma crise financeira que implicaria o abandono do enquadramento legal europeu. Logo que essa possibilidade fosse admitida, as taxas de juro tornar-se-iam proibitivas ? Alguém se candidata a propôr este caminho?

1 The Dark Heart of Italy. Travels Through Time and Space Across Italy, Faber and Faber, 2003.

2 Nicolas Baverez, «On ne change pas une équipe qui perd», Le Monde, 8 Junho 2005.

3 The crushing reality of making the Eurozone work, 7 Junho 2005.

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