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19 de Julho de 2006 às 13:59

A questão judaica

O título parece fora de moda. Sobretudo entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX o título teria sido usado até à exaustão. Após a Segunda Guerra Mundial, a expressão apareceu caducar.

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Como se a questão judaica tivesse passado a ser uma questão universal, da humanidade inteira, e judeu mais não fosse que uma metonímia para a condição humana. Mesmo os menos dados à metafísica tendem a reduzir afirmações hiperbólicas sobre o holocausto.

O que define, não o judeu como pessoa individual e concreta, mas a questão judaica assenta em duas linhas: a persistência e a minoria. Se há traços de religiões tão ou mais antigas (animismos, xamanismo), a verdade é que nenhuma religião entre o Levante e a Europa conseguiu sobreviver durante tanto tempo com traço de continuidade. Por outro lado, o judeu é a eterna minoria. S. Ambrósio no séc. IV bem percebeu os jogos que os judeus fizeram contra os cristãos apoiando-se no império persa, e o apoio que deram a Julião o Apóstata. Minoria no Egipto, minoria na Babilónia, no império medo-persa, no helenístico, no romano, no bizantino, no dos partos, no bizantino, no árabe, no turco, entre a Europa. Minoria finalmente hoje nos Estados Unidos, na Europa e igualmente no Médio Oriente. Uma História de privilégios especiais (isenção de impostos, de esforço de guerra etc.) e de sofrimentos lembrados. Uma História de jogos duplos, se considerarmos a unidade do povo, ou finalmente apenas de separação do povo, quando condenamos o judeu que apoia árabes e turcos contra cristãos, ingleses e franceses contra turcos ou árabes ou americanos contra europeus. Ser uma minoria permanente raramente traz História de nobreza, salvo se de nobreza se tratar. As anedotas morais da infância de Espinosa têm muito pouco de moral, mostrando como pode-se ser pouco heróica a vida de uma minoria.

Isto o que de específico tem o traço judeu. Já não é pouco, mas nada é mais que isso. O problema é que a estreiteza histórica da nossa época decidiu substantivar o judeu, inicialmente para seu bem, e, como não poderia deixar de ser, para seu mal. O erro na questão judaica foi dar visibilidade. Uma visibilidade excessiva e desproporcionada, de que hoje em dia se paga um preço.

A primeira visibilidade foi a de se inventar uma raça judia. Os grandes génios seriam numa imensa proporção judeus, segundo o mito popular. Para isso criou-se uma figura de judeu que é racista, inspirada tanto no iluminismo, como num dos seus filhos, o nazismo. O judeu seria visto como uma raça, uma entidade determinística. Proust seria judeu, quando tem apenas um costado judeu. O facto de escrever em francês, com referências francesas, de ter na maior parte sangue francês, em nada relevaria. Einstein é judeu, mesmo que escreva em alemão, ouça Mozart e a ciência que pratique seja ela toda de matriz alemã e, no limite, europeia. O judeu seria particularmente dotado, mesmo que dos judeus do império turco ou de Madagáscar não fique memória. Esquece-se que as figuras apontadas como glórias judaicas são europeus, vivem na cultura europeia, muitos deles cristãos convictos (Cantor e Bergson são dois bons exemplos) ou culturais (Zweig, Mahler, Kantorowicz, por exemplo).

Qualquer pessoa que saiba da experiência humana (exactamente: História), sabe que a substantivação na glória já aponta para a substantivação na desgraça. A História da nobreza demonstrou isso. Como se podem apagar de um só traço todas as qualidades de uma classe, assim como antes se apagavam os seus defeitos.

A segunda visibilidade corta o judeu da humanidade. Estabelece o judeu como o estalão máximo do sofrimento, o paciente do mal absoluto. O holocausto deixa de ser o horroroso sofrimento de pessoas certas para se situar fora da História, se mitificar, assumir o estatuto de transcendência. Se durante os anos 70 e 80 no seio das massas esta glorificação do sofrimento atingiu o seu ponto máximo, vemos hoje o preço que se paga por esta glorificação.

Sendo o holocausto o mal absoluto com o qual nada se pode comparar tudo o resto é mal menor em comparação. O risco é por isso de o comum se sentir autorizado a praticar ainda piores crimes. Estará assim relativamente legitimado, porque nunca conseguirá ser pior, nem sequer igual ao horror do holocausto. O Ruanda é coisa relativa, o Camboja de Pol Pot é de menor importância, o genocídio dos curdos, pouco relevante, o genocídio de cristãos e animistas pelo Sudão, mera guerra civil. No fundo, esta absolutização do holocausto tem por detrás um pano de fundo racista. Tendo sido europeus a sofrer e europeus a fazer sofrer, tem mais importância que outras crueldades feitas no mundo.

Esta relativização dos restantes males perante o mal absoluto que seria o holocausto não apenas desautoriza o sofrimento de milhões de pessoas concretas que nos anos de 1940 sofreram na sua carne estes horrores, mas permite a legitimação de todos os restantes horrores. Os ideólogos «democratas» turcos adoram citar Wiesel e outros autores judeus para mostrar a relativa pouco importância, o carácter meramente «lamentável» do que foi o horrível genocídio dos arménios pela Turquia. Como se a criança arménia a quem pregaram a sangue frio ferraduras nos pés, as mulheres queimadas com gasolina ou o padre arménio em cima do qual os soldados turcos acenderam lenha para aquecer o café pudessem estar aliviados pelo facto de afinal o seu sofrimento não decorrer do mal absoluto.

O terceiro erro, benigno no início, foi o de muitos dos que se assumiam como judeus terem apostado na transformação da herança cristã e pagã indo-europeia em pura estética ou ética. Grandes apaixonados da Idade Média, da Renascença, da cultura europeia, colaboraram na transformação do que era seiva vital em «apenas» dado cultural.

Bem sei que é tema perigoso para ser tratado e que qualquer frase que não seja de confirmação ritual do horror absoluto e do génio judaico passa por nazismo, quando o vulgo se esquece que tanto os detractores dos judeus como os seus idólatras padecem do mesmo mal: o de que esquecerem que falamos de pessoas, providas do grau de banalidade comum, de grandeza e miséria exactamente nas mesmas proporções que os outros seres humanos, dos quais não se distinguem. Vejamos por isso os preços que pagam os que se afirmam como judeus hoje em dia, decorrentes desta substantivação e absolutização da questão judaica.

Criado o paradigma do mal absoluto, o do nazismo, Israel vê hoje em dia virar contra si a mesma acusação. Ironia da História, é hoje em dia Israel chamada de racista e de nazi. O palestiniano é substantivado como a vítima sacrificial, quando é certo que os mais perseguidos, os palestinianos cristãos, entre a pressão muçulmana e judaica, só não são notícia porque na sua maioria emigraram para a África, a Europa e os Estados Unidos. O campo de concentração ressurge sob a forma de campo de refugiados. E como a direita perdeu a legitimidade para falar na questão judaica, o discurso despudoradamente anti-semita surge da esquerda doce e do islamismo. O primeiro manifesto ecológico, em papel reciclado vem da extrema-esquerda alemã dos anos 70, filha do nazismo que tanto criticou, mas de cujos mitos e violência é herdeira, manifesto violentamente anti-semita. Os muçulmanos, mesmo que não fundamentalistas, sentem-se autorizados a fazer séries televisivas em que os mais grosseiros mitos quanto à crueldade hebraica aparecem (sacrifícios humanos etc.) sem que nenhum dos bem-pensantes, geralmente ligados à esquerda do fascismo fúcsia, sinta a mais pequena indignação.

Se alguém comete crimes e ninguém o denuncia, a baixeza está tanto do lado de quem pratica como do lado de quem não manifesta indignação. O iluminismo no seu lado negro (nada é puro nesta vida) mostra à esquerda e à direita a sua potencialidade mecanizadora do ser humano e a sua dessacralização. Preço a pagar? Defensores de uma visão estética do cristianismo, vêem-no agora enfraquecido como travão contra o anti-semitismo. Críticos dos horrores da cultura cristã, vão apagando as barreiras contra a desumanização de pessoas sob o nome de uma raça. São hoje em dia pensadores que se assumem do judaísmo que se chocam por os fedelhos de origem muçulmana recusarem em França a aprender a Idade Média, o românico, o gótico, as cruzadas, porque afirmam ser uma visão judaico-cristã da História (como pode um fedelho saber o que isto significa?). As acções dos sobrinhos-netos a pedir indemnizações pelo holocausto retiraram toda a dignidade e a pureza às intenções dos que invocam o mal absoluto.

Os erros de quem colocou a questão judaica nos termos em que o espaço público ainda a vive hoje em dia passam assim por clássicas asneiras de quem não conta com a força da História. A substantivação para o bem prepara a substantivação para o mal. A glória assente em bases tão frágeis prepara uma queda rápida. O que foi em suma, na perspectiva das massas, uma glória intocada durante duas ou três décadas (os anos 70 e 80 do séc. XX) abre caminho para toda a espécie de caminhos indignos no futuro. Este é mais um dos campos em que se vê como a nossa época paga o preço do seu analfabetismo histórico e da sua presunção. Cada novo brinquedo que cria rebenta-lhe nas mãos. Aprendizes de feiticeiros abrem caixas de Pandora. Os gregos eram bem mais sábios que nós. Eles ao menos sabiam que tais caixas existiam. E o que se segue dar-nos-á a amarga demonstração do seu poder. Hoje em dia judeus são vítimas de fascismos menos negros e mais verdes, fúcsias, islâmicos ou de esquerda, que se sentem livres para os rebaixar de forma grosseira com a complacência dos bem-pensantes. A substantivação imaculada de outras minorias étnicas aproveitam ainda hoje em dia seguirá (e já está a seguir) o mesmo curso. Quem não sabe História está condenado a repeti-la, dizia Santayana. E condena-nos a viver num mundo em que a opção se faz entre o enfado ou a revolta.

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