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Opinião
06 de Agosto de 2004 às 13:59

A questão da ideologia

A balbúrdia que vai pelo PS espelha, com nitidez, o vazio em que vegeta a vida política portuguesa.

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A luta pelo poder tem adquirido, nos últimos tempos, uma engenhosa logorreia que atravessa, por igual, o PSD, ele também revolvido por uma nova disciplina das ciências políticas: o «carisma televisivo». O epifenómeno não é de agora: o famoso debate na TV entre Cunhal e Soares foi o ponto de partida, cedo aproveitado por todos os que acrescentaram ao modelo a infidelidade da cópia. Esta gente não possui a mais ténue semelhança com a estatura daqueles dois homens, que estavam à altura do seu tempo.

No vivo diálogo de 1975 discutia-se a «ideologia» como pressuposto de duas concepções de sociedade. O jogo era claro. O problema, hoje, diz respeito às relações entre o que os «líderes» partidários desejam e o objecto a compreender: Portugal.

Não se percebe muito bem o que Sócrates diz, quando fala em «socialismo moderno». Como é manifesta batota a convocação de Santana para a «herança» de Sá Carneiro, de que, demonstradamente, ele não é o «herdeiro». Estes dois são a funesta representação do medíocre espalhafato politiquês a que chegámos: não explicam exactamente porque não compreendem; e não compreendem porque ignoram a escala da complexidade dos problemas portugueses. Ambos são hábeis na arte de falar sem nada dizerem.

A barafunda registada, tanto no PS quanto no PSD, não diz, apenas, respeito aos próprios partidos. Entre o PSD e o PS dirime-se a questão do poder e do projecto político; portanto, tudo o que neles acontece interessa à sociedade portuguesa no seu conjunto.

Devemos, todos nós, estar conscientes dessa evidência, e não abdicar do direito que nos assiste de exercer a intervenção crítica.

O PS continua a ser uma caixa de surpresas. A polémica entre os três candidatos a secretário-geral, que se alargou, num patamar de grosserias, impele-nos a considerar que a apregoada «democracia interna», com «tendências» e «liberdade livre» é uma falácia. Helena Roseta, em artigo no «Público» de anteontem, fornece-nos um retrato daquilo que considera a «asfixia interna» do PS. É um documento alarmante e, a um tempo, esclarecedor. Fica-nos a ideia de que a manipulação do «aparelho» é determinante para o resultado das eleições, e que tudo está engenhosamente preparado para Sócrates ganhar a partida. Infâmia!, clamam uns,i ndignados. Pura verdade!, exclamam outros, não menos escandalizados. Diz - que - disse - o - que não - diz - que - disse - eis o vaporoso contributo para o debate de ideias.

A extravagante mortificação poderia resolver-se com a discussão pública sobre o que os candidatos pretendem e da qualidade do seu pensamento político. José Sócrates, a princípio, opôs-se, alegando que desaprova a chicana da mediatização. Afirmação surpreendente vinda de quem é um produto típico da televisão, sem a qual ele seria mediocremente conhecido. Parece, no entanto, que já concorda em «debater».

Debater, quê? É conhecida a fragilidade do seu pensamento «ideológico», e as instrutivas evanescências culturais de que tem dado exuberantes exemplos. Sócrates não passa de um epígono canhestro de António Guterres, cuja acção governativa foi não só um desastre, como uma ruiva ética. Os socialistas desejam um Guterres em segunda mão, ou seja: a diminuição, cada vez mais acentuada, do ideário de Esquerda, raiz fundadora do partido?

As declarações de Sócrates são de molde a considerar que o «equilíbrio» social e político por ele ambicionado voga nas mesmas águas palustres do PSD. As evidências constituem testemunhos eloquentes: Sócrates é tão «socialista» como Santana Lopes é «social-democrata».

Esta ambiguidade ideológica em que vivemos talvez explique as razões da paralisia política dos partidos portugueses. Mas não define tudo. Portugal parece cumprir uma expiação à Kafka, na medida em que todas as actividades sociais e políticas são integradas na esfera das evasivas. Aponta-se o «sistema» como eivado de perversidades, mas os culpados nunca se encontram em parte alguma. Eis porque Santana Lopes é primeiro- ministro. Eis porque José Sócrates vai ser secretário-geral do PS.

Quem nos acode!?

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