Opinião
A blasfémia
O caso das caricaturas de Maomé revela grandes ensinamentos e um dos menores não é o de aprendermos o que significa realmente o conceito de blasfémia e o que ela representa para a Europa.
É evidente que nesta área como em tudo é difícil generalizar, mas seria desonesto não tentar descobrir as linhas de força que estão por detrás desta questão. Isto porque o que seja a Europa também se define pela sua relação com a blasfémia.
Os filólogos ensinam que blasfémia se opõe a Eufémia, o que é compreensível. Que de origem significaria calúnia, má palavra e só mais tarde teria tido um significado derivado religioso. Que entretanto teria significado uma má palavra pronunciada num ritual. A blasfémia está sempre ligada ainda hoje em dia a uma ideia de ritual. São ainda hoje em dia os povos mais dados à pureza ritual que mais se preocupam com a blasfémia. Os indo-europeus talvez tenham sido dos povos mais centrados na pureza do ritual, mas igualmente os que mais recolheram críticas a uma concepção ritual do divino. A História do hinduísmo (seja lá o que isso for) mostra-o, mas igualmente o sucesso da religião menos ritualizada na sua base, o cristianismo, em espaço indo-europeu. E se o ritual manifesta necessidades profundas do ser humano, a sua tirania acaba por relevar da psiquiatria, de tiques obsessivos compulsivos. Ou deles vem ou neles degenera.
As crianças são ensinadas que a liberdade perante a religião nos veio da democracia, eventualmente da Revolução Francesa. A verdade é que também ensinamos às crianças que dois mais dois são quatro ou que o espaço tem três dimensões e é euclidiano, mas exemplos muitos simples podem-nos mostrar que nada disto é linearmente assim. O exemplo da dança das horas ou da mão de Lebesgue dão-nos provas simples de que no dia a dia trabalhamos com estruturas algébricas em que 23+3 são dois (três horas depois das 23h estamos às duas da manhã) ou, como Lebesgue mostrou, a mão tem uma geometria não euclidiana (repare-se que o caminho mais curto entre as unhas de dois dedos diferentes não é uma linha recta num mundo com a forma de uma mão).
O grave é o que ensinamos às crianças como pontos de apoio iniciais acabam por ser as escoras definitivas do seu pensamento. Quando vemos o homem público enunciar é confrangedor ver como as suas categorias mentais evoluíram muito pouco desde os seus seis anos.
É que a relação do europeu com o sagrado não se fez com a democracia. Este é mais um dos aspectos que mostra que ser europeu não é ser democrata. E que escondemos por detrás do conceito de democracia o que é ser europeu no fundo. Ser democrata é apenas uma das formas históricas da manifestação do que é ser europeu. A arrogância do europeu que julga a sua vida individual infinita no seu valor tem fontes bem mais fundas que a democracia. Por isso pode blasfemar.
Se bem virmos existe uma destrinça relativamente constante entre os europeus e os orientais na visão da blasfémia. A imagem da blasfémia é a do que atira pedras ao ídolo. O herético, até etimologicamente, é o sectário, o que se separa. O blasfemo é o que se põe à frente, o herético o que se põe de lado. Embora no mundo oriental, nomeadamente muçulmano, a heresia tenha sido fortemente perseguida (basta ver as lutas entre sunnitas e xiitas e karedhjitas, bem como o que o pobre do Averrois sofreu), a blasfémia impõe-se muito mais como crime que a heresia. O inverso se passa na Europa. Pôr-se de lado é bem mais grave que se pôr à frente.
Nunca é demais salientar que é um paradoxo ver como uma religião de origem semítica se tornou a religião que formou a Europa. Mas em parte isso deve-se ao facto de Cristo ser o blasfemo sagrado. Não cumpre o Sábado, dá-se com publicanos e prostitutas, diz que destrói e reconstrói em três dias o templo e pior que tudo, diz ser o Messias, o Filho do Homem. É natural que Caifás, o oriental, rasgue as suas vestes perante a sagrada figura. Caifás é oriental, como o muçulmano.
Também o nosso passado indo-europeu mostra o blasfemo como parte do sagrado. O «Lembra-te de que és mortal» do triunfo romano. O deus Ganesh que é gozado, Ares gozado por Homero na Ilíada, Zeus objecto de embuste, Afrodite e Ares alvo da chacota dos deuses depois da armadilha de Hefaístos.
No cruzamento, muita história de blasfémia na Europa já formada. As Pasquinate na Via del Babuino em Roma, gozando com a hierarquia eclesiástica até ao papa e mesmo as coisas sagradas, o inocente fado de Coimbra da samaritana que beija Jesus (lembro que Jesus para os cristãos é Deus, ao contrário de Maomé que é apenas um homem para os muçulmanos). O chiste contra o padre, o frade e a freira, contra a própria eucaristia (o «papa-hóstias») e assim por diante são lugares comuns na Europa sem que provoquem escândalo. O orgasmo místico de Santa Teresa de Ávila, o nada de Mestre Erkhart são tantos outros exemplos de blasfémias sagradas que, se suscitaram eles mesmos o ridículo, nunca marcaram a cultura europeia na perspectiva da blasfémia.
A que se deve esta diferença entre a Europa e o mundo muçulmano? Em primeiro lugar a uma diferença típica do mundo indo-europeu. Se o indo-europeu nunca perdeu a noção de transcendência sempre a ligou à intimidade. «Deus é pai» é válido muito antes do cristianismo no mundo dos indo-europeus. O indo-europeu sabe-se parente da divindade. As nossas raças são filhas de deuses, do Diaus Piter, ou somos todos primos de Jesus por via de Adão. Júlio César era descendente de Vénus, Platão descendente dos deuses, como todas as famílias reais da Grécia. As famílias reais e aristocráticas europeias fizeram genealogias mostrando que têm sangue de Cristo (quando por ironia há bem mais provas que tenham sangue de Maomé, sendo famílias sagradas para o Islão, mais que as dos meros chefes religiosos).
Só gente que se julga de ascendência divina se pode atrever a dizer tais coisas sobre o divino. E pode mesmo dizer que ele não existe. O semita, ou semitizado pelo Islão, tem uma concepção bem mais distante da divindade, mas que o aterroriza ou o deixa sem graça pelo menos. O temor e o tremor caracterizam-nos bem mais, o que vem desde a Babilónia dos deuses pouco dotados de amor pela humanidade, mais caracterizados pela grandeza e pelo poder que pela ordem benfazeja. Não há Dharma fora da cultura indo-europeia e muito menos Krishna ou Mitra-Varuna.
A possibilidade da blasfémia, igualmente a possibilidade de uma blasfémia sagrada, é facto indo-europeu e marcou a Europa, como a escatologia da divinação do homem na teologia ortodoxa bem mostra.
Revela a consciência do homem ser divino, participar do divino. E de uma associação entre transcendência e intimidade. O homem é companheiro de Deus. Por isso pode blasfemar.
O muçulmano, concentrado na blasfémia, apenas mostra a sua falta de confiança na divindade. Ela está longe e ele tem medo a todo o momento de a perder. O europeu pode-se chocar com a grosseria com o sagrado e mesmo revoltar-se, mas nunca foi base-mestra da sua cultura a perseguição da blasfémia.
É que esta obsessão com a blasfémia mostra o outro lado do muçulmano e do semitizado por ele: a falta de sentido de humor. A intolerância pode manifestar-se pela perseguição da heresia. A falta de sentido de humor, o desconforto de si, pela perseguição da blasfémia.
O que eu disse mais uma vez pode deixar o leitor a pensar que são meras especulações. Mas quando compara as dezenas de histéricos atacando um filme grosseiro e intencionalmente agressivo em relação à Virgem Maria em país de profundo catolicismo com os milhões que se levantam por causa de uma simples caricatura, percebe que estamos a falar de mundos bem diferentes, que vão dos países árabes até aos turcos, persas e indonésios.
Um mundo insatisfeito consigo mesmo, que quer manter a sua presença pela imposição, pela exigência do pedido de desculpas, sem confiança em si, sem intimidade com o divino e, se com uma nobre noção de transcendência, em suma sem nenhuma intimidade com ela. A sua relação com a divindade depende do constrangimento alheio apenas porque sente que esta relação tem bases frágeis. Se Caifás achasse Jesus um tonto não teria destruído as suas ricas vestes. Caifás duvida, tem medo de assentar a sua vida em fracas bases.
E um outro mundo onde alguns políticos europeus querem destruir o sentido de humor da Europa, porque bem sentem que bem podem mais dele ser vitimas que actores.