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(126) Shell, Bosch

A publicidade com animais é frequente, mas essa presença constante mal se consciencializa porque a utilização idealizada das bestas nas coisas humanas está naturalizada desde há milhares de anos.

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Não me refiro a anúncios de produtos para animais, como a comida para gatos e cães, nem a anúncios de alimentos para os humanos feitos à base de animais, como os magníficos leitões pastando numa ribeira cristalina num anúncio de carnes Nobre que aqui analisei [117]. Falo de publicidade a produtos e serviços em nada directamente relacionados ou relacionáveis com o mundo animal: combustíveis, bancos, vestuário, etc.

Usar animais nesses casos explica-se pela mesma razão que o recurso ao mundo animal na literatura. A bicharada tem, de facto, fornecido uma enorme gama de metáforas, símiles e símbolos à literatura, popular ou erudita. O seu uso na publicidade é comparável ao da literatura (havendo, num e noutro caso, boas e más práticas). Os anúncios com animais são, muitas vezes, fábulas publicitárias, quer dizer pequenas estórias ilustradas, dando aos animais uma feição ou uma significação humanas em que a lição moral, inerente à fábula literária, é em simultâneo uma lição comercial, dado que o objectivo é a venda de alguma coisa.

Por que outra razão haveria de usar-se animais nos anúncios se não fosse para mostrar alguma coisa de humano? A estética não chega para explicar a presença da bicharada. Se a beleza da coisa natural fosse suficiente para a atrair para as lições de moral ou as incitações comerciais veríamos então muito mais publicidade com estrelas e planetas, pedras, plantas, rios, poeiras cósmicas, etc. Não é o caso.

Os animais representam as camadas profundas do inconsciente e do instinto e simbolizam os princípios e as forças universais, materiais ou espirituais, como os signos do Zodíaco exemplificam. Ao sermos animais mas distinguindo-nos de todos os outros, usamos a sua diversidade para exemplificar metafórica ou simbolicamente a nossa própria diversidade social. Ao mesmo tempo, usamos a ideia de animal em si para simbolizar a besta que existe em nós, seja em sentido positivo como negativo.

Uma campanha recente do gasóleo Shell V-Power usava essa simbologia do poder animal do homem. Os anúncios, televisivos e de imprensa, mostravam ora um ora dois cavalos galopando à beira-mar. À primeira leitura, a publicidade pretendia sugerir que a comparação se fazia entre o gasóleo e o cavalo: «uma nova raça de gasóleo», o «ultimo exemplar de uma linhagem de combustíveis de alta performance»... Em nenhum lado se fala de cavalos ou raças equídeas. O cavalo, que na arte popular e erudita significa pénis, era usado metaforicamente para significar o animal que há no condutor: pode ver-se nas imagens dos anúncios garanhões, cavalos de cobrição a que se associou o conceito de homem conquistador.

A palavra potência é a chave da leitura desta campanha: «Descubra o que acontece quando se acrescenta a palavra potência a gasóleo», «maiores níveis de potência e aceleração»... Quem acelera e quem tem o poder de usar a potência do combustível e do carro não é o gasóleo, é o condutor. Em resumo, o cavalo representa aqui o condutor, não o gasóleo. É ele, o observador do anúncio, que galopa no seu carro a grande velocidade, rasgando as águas em plena liberdade – e a água pode aqui significar fonte de vida, a fecundidade.

O cavalo, aliás, o unicórnio, foi usado numa campanha recente de frigoríficos Bosch. À primeira vista, a ligação entre o licorne e o electrodoméstico era óbvia, pois deram a este o nome de UniCombi. Mas essa ligação era muito superficial. O que se pretendeu significar foi o poder e o luxo do frigorífico, que são atributos do unicórnio medieval. Aliás, o licorne também combatia o Sol (o calor), o que acresce à boa escolha do símbolo de um gerador de frio ( e na foto o licorne enfrenta a luz do sol). A posição do «unicórnio» na fotografia, com as patas dianteiras no ar, e a cor escolhida, o branco, também remetem para uma sexualidade sublimada que a Idade Média incorporou, a penetração do divino nos humanos. A frase publicitária, sendo bastante tosca, tenta inculcar este conjunto de conceitos: «O mito que se converterá em lenda» se fosse ao contrário diria o mesmo: a lenda que se converterá em mito... Já a última frase do longo texto dá sentido ao anúncio e a esta análise: «O frio que se converterá em lenda.»

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