Opinião
Tordesilhas 2.0: a surpreendente força da economia ibérica
Em 1494 os reinos de Portugal e da Espanha eram os mais poderosos da Europa e dividiram entre si no tratado das Tordesilhas o mundo não europeu conhecido e por descobrir. Esta semana o Eurostat revelou que Portugal e Espanha foram o motor da Economia da Zona Euro em 2024.
Em 1494 os reinos de Portugal e da Espanha eram os mais poderosos da Europa e dividiram entre si no tratado das Tordesilhas o mundo não europeu conhecido e por descobrir. Esta semana o Eurostat revelou que Portugal e Espanha foram o motor da Economia da Zona Euro em 2024. As duas economias ibéricas, que representam apenas 12,5% do PIB da Zona Euro, foram responsáveis por 50% do crescimento total em 2024, tendo crescido em termos homólogos 2,7% Portugal e 3,5% Espanha. O efeito é ainda mais notório no 4.º trimestre, período no qual Portugal cresceu uns admiráveis 1,5% em cadeia e Espanha 0,8%, contrastando com a estagnação da Zona Euro. Sem a península Ibérica, a Economia da Zona Euro teria tido um crescimento negativo no 4.º trimestre, fruto do crescimento negativo da Alemanha e França e estagnação na Itália.
Parece difícil que península Ibérica consiga continuar a ser o motor da Zona Euro, se as maiores economias entrarem mesmo em recessão. Mas as perspetivas para 2025 nos dois países continuam muito positivas, com crescimentos estimados de 2,5% em Espanha e 2,2% em Portugal. Acho mesmo que o potencial de crescimento de Portugal está a ser subavaliado pelos analistas e poderá igualar a Espanha. Ambas as economias têm fatores de força semelhantes, embora com algumas diferenças. Faço de seguida a análise das principais fontes de crescimento de Portugal, salientando as diferenças com Espanha, quando relevantes.
Em primeiro lugar, surge o saldo migratório largamente positivo que mais do que suplanta o saldo demográfico negativo em ambas as economias. Embora ambos os países tenham populações envelhecidas e devessem estar a reduzir a sua força de trabalho, o fluxo imigratório desde 2022 é tão elevado que o nível de emprego está no máximo histórico. No final de 2024 tínhamos em Portugal 5,15 milhões de pessoas empregadas (um aumento de 1,3% face a 2023) e o desemprego continua baixo, nos 6,7%. Portugal está a atrair cada vez mais população estrangeira, a qual consegue integrar no seu mercado de trabalho, ao mesmo tempo que a participação dos portugueses na força de trabalho também está em máximos. Ou seja, a imigração não está a roubar empregos aos nacionais. Pelo contrário, está a sustentar o crescimento da economia, acrescentando 100.000 trabalhadores e 1-2% de crescimento ao ano. Dados recentes indicam que esta tendência irá continuar. Portugal é um destino cada vez mais atrativo para imigrantes, tanto os de alta como os de baixa qualificação. Uma elevada proporção da imigração de fora de Europa é brasileira, a qual se integra muito facilmente por partilhar uma língua e cultura comuns. Isto permite a Portugal uma capacidade de absorção de imigrantes maior e mais rápida do que outros países europeus, cuja maioria da imigração vem da Ásia ou de África. Embora Espanha beneficie do mesmo fenómeno com a imigração da América Latina, o efeito é mais forte em Portugal em percentagem da economia. A consolidação e investimento pelo Governo na nova agência AIMA, a criação de uma política de imigração mais rigorosa, ágil e inteligente, e os novos incentivos fiscais para todos os jovens e para trabalhadores altamente qualificados que venham para Portugal, permitirão manter o elevado nível de imigração, alimentando o crescimento da Economia.
Em segundo lugar, a península Ibérica continuará a beneficiar da deslocalização de atividades produtivas para a Europa num fenómeno de "near-shoring" para criar cadeias de valor mais curtas e mais robustas a choques externos. No novo contexto geopolítico muito incerto, as regiões seguras do Sul da Europa tenderão a beneficiar mais destes movimentos do que a Europa de Leste que estava em forte crescimento industrial até à invasão da Ucrânia. Neste capítulo, e dada a maior dimensão de mercado interno e maior centralidade, a Espanha tenderá a beneficiar mais de investimentos de relocalização industrial, ao contrário de Portugal que poderá beneficiar mais de investimento de serviços de valor acrescentado, nomeadamente centros de competências e de serviços partilhados de grandes multinacionais europeias. Alguns exemplos a destacar na última década são o BNP Paribas que criou 9.000 empregos qualificados em Portugal e a Bosch com mais de 7.000 empregos e vendas de 2 mil milhões de euros dos quais 95% para exportação. Em comparação, a AutoEuropa, o maior e mais importante investimento industrial em Portugal dos últimos 50 anos, gerou 5.000 empregos diretos. Ou seja, em Portugal na última década tivemos já várias "AutoEuropas" na área de serviços, as quais, embora não tendo o mesmo grau de externalidades positivas na Economia do que as unidades industriais, representam uma fileira de crescimento económico com enorme potencial. Estes centros oferecem remunerações bastante mais elevadas do que a média nacional, atraindo talento internacional, retendo o talento nacional e aumentando a produtividade da economia. Esta é mesmo uma área em que o Ministério da Economia deve estar muitíssimo atento e criar condições especiais para a atração de mais centros de competências, trabalhando em estreita parceria com os CEO locais destas multinacionais. Portugal está tipicamente no top 3 das melhores localizações na análise das multinacionais. Um pequeno esforço ou incentivo pode levar à escolha de Portugal para estes investimentos. Em comparação com as decisões sobre novas unidades industriais, as decisões sobre centros de serviços são mais rápidas de fazer, mais fáceis de implementar e têm um crescimento gradual ao longo dos anos. Existe também uma forte sinergia com o ecossistema de empreendedorismo nacional, em que empresas unicórnios em forte crescimento têm de decidir onde contratar para os seus centros de desenvolvimento e Portugal está novamente no topo da lista.
Em terceiro lugar, o bom momento do setor do Turismo a nível global, de que muito beneficiam ambos os países ibéricos, estando os seus mercados de turismo maduros e a desenvolver segmentos específicos de maior valor acrescentado que vão além do tradicional sol, praia e, no segmento alto, o golf. Há forte crescimento das receitas turísticas em Portugal todos os anos, em particular com o desenvolvimento de segmentos especializados do luxo, enologia, gastronomia, surf, eventos, saúde, educação, com visitas mais bem distribuídas por todo o território. Com um peso nas exportações de 10% e um peso no PIB de cerca de 13%, é errado dizer que Portugal está excessivamente dependente do Turismo, embora este tenha sido responsável por cerca de 1% do crescimento do PIB nos últimos anos. O desafio em Portugal e Espanha é posicionar o turismo em segmentos internacionais de valor acrescentado, o que permitirá aumentar a produtividade do setor e tornear alguns constrangimentos de capacidade, em particular ao nível aeroportuário.
Finalmente há outros fatores de competitividade da península Ibérica face ao resto da Europa, nomeadamente a Energia. Com um mercado ibérico integrado e elevada geração elétrica por fontes renováveis, a que acresce o acesso privilegiado a gás do Norte de África, a península Ibérica é mais competitiva em energia que o coração industrial da Europa, ainda a fazer o desmame do gás russo. Saliente-se também o crescimento do setor agroflorestal nos dois países, beneficiando de investimentos tecnológicos e técnicas produtivas modernas.
Em termos conjunturais, Portugal e Espanha beneficiarão ainda no próximo ano e meio dos investimentos do PRR, que estão finalmente em velocidade de cruzeiro. Aqui a Espanha levará alguma vantagem pois tem uma maior fatia do seu Plano de Recuperação afeto ao setor empresarial, enquanto Portugal privilegiou a administração pública, o que pode gerar um aumento do setor público difícil de corrigir mais tarde. Mas este tema tão falado do PRR é conjuntural, os outros fatores que referi são estruturais e mais importantes para as duas economias ibéricas continuarem a ser motor de crescimento da Zona Euro.