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A nova ordem mundial e as suas consequências económicas

A nova ordem mundial que se está a consolidar tem uma natureza diferente.  É caracterizada pela lei do mais forte em que os protagonistas principais são os Estados-nação e os seus governantes. As regras não importam, importa a força e o poder.

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A inauguração de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos a 20 de janeiro marcará o início formal de uma nova ordem mundial. Por ordem mundial quero dizer a forma como as nações se relacionam à escala global, tanto no plano político, como militar e económico. A mudança é profunda, as suas causas estão em ebulição desde 2010, os seus sintomas já se sentem fortemente desde 2020, sendo a invasão da Ucrânia pela Rússia e a reeleição de Trump evidências do emergir dessa nova ordem.

A ordem mundial que agora termina era caracterizada pelo princípio do cumprimento de regras, concretizadas em convenções, tratados e organizações multilaterais, modelo esse construído no pós-2.ª Guerra Mundial e consolidado com a queda do muro de Berlim em 1989, que afirmou a era da hegemonia americana e das democracias liberais. Era o mundo da ONU e dos objetivos mundiais de desenvolvimento, da Organização Mundial do Comércio e das regras de comércio livre, do Banco Mundial e dos programas financeiros de desenvolvimento, da NATO e dos compromissos de proteção mútua dos seus membros, do Acordo de Paris e dos compromissos para a proteção do planeta, entre muitas outras organizações multilaterais, agências e tribunais que implementavam regras, modelos de colaboração e programas para alcançar objetivos globais. Nesta ordem mundial, a Carta Universal dos Direitos Humanos servia como um dos referenciais-base, o conceito de verdade dos factos era essencial para a aplicação das regras definidas, e a legitimidade de atuação advinha do cumprimento das regras. Os Estados comprometiam-se a respeitar essas regras ou pelo menos a aceitar as sanções do não cumprimento. Obviamente que nem tudo eram rosas. Muitas vezes os Estados optavam por não participar em certos acordos ou não respeitar regras que não lhes interessavam, mas isso prejudicava a sua legitimidade e, em alguns casos, tinha punição. Nesta ordem, os Estados Unidos serviam como força de intervenção global para punir agressores e os capacetes azuis da ONU como polícia global para manter a segurança em países com conflitos internos. Por exemplo, o ataque injustificado do Iraque ao Kuwait teve como consequência a invasão legítima do Iraque pelas forças americanas. Já a 2.ª invasão do Iraque foi ilegítima pois não foi resposta a nenhuma agressão do Iraque, mas os Estados Unidos deram-se ao trabalho de a tentar legitimar no seio da ONU.

Esta ordem mundial das regras, tratados, verdade, desenvolvimento global e legitimidade foi enfraquecendo nos últimos 15 anos em virtude de um conjunto de fatores interligados e complexos. De entre eles destaca-se não tanto o emergir da China como potência económica (o Japão e Alemanha também emergiram com enorme força décadas antes), mas o facto de a China ter conseguido conciliar o desenvolvimento económico acelerado com o reforço da ditadura e a capacidade de planear a muito longo prazo, aceitando apenas as regras que lhe interessavam e tendo força para defender um modelo alternativo. Destaca-se como causa também o fim da verdade. Há vinte anos, um político numa democracia liberal não conseguiria dizer mentiras e ser eleito. Atualmente, a manipulação da opinião pública é o mais importante no jogo político e, para muitos políticos que são recompensados nas urnas, a verdade é totalmente irrelevante. Este mundo da desinformação e da manipulação arruína o princípio das regras que é a base das democracias liberais. Um terceiro fator foi a perda de nível de vida relativo da classe média em muitos países desenvolvidos, a qual aprofundou um sentimento de insatisfação e abriu a porta a políticos populistas conquistarem o poder. Há outros fatores importantes a considerar que não tenho espaço para elaborar aqui. Mas confesso ser com muita tristeza que assisto ao fim da ordem mundial que trouxe uma paz, prosperidade e desenvolvimento sem precedentes à humanidade.

A nova ordem mundial que se está a consolidar tem uma natureza diferente. É caracterizada pela lei do mais forte em que os protagonistas principais são os Estados-nação e os seus governantes. As regras não importam, importa a força e o poder. A verdade dos factos não importa, importam os objetivos vitais de cada nação e a lógica do reforço do poder interno dos seus governantes. É uma ordem pautada a nível global pela competição latente entre duas potências globais (EUA e China) que tentam reforçar ou consolidar posições dominantes. Neste contexto global, outras Nações e blocos regionais tentarão encontrar uma posição forte, que seja dominante a nível regional e lhes dê mais autonomia estratégica. As alianças serão circunstanciais e úteis enquanto servem o interesse dos Estados mais fortes. Entrámos na época do "hard power".

É assustador e revelador desta nova ordem que os anúncios recentes de Trump e da sua equipa sejam o controlo do Canal do Panamá, a anexação do Canadá, a compra da Gronelândia, a imposição de tarifas aos vizinhos, o reescrever dos mapas, e o enfraquecimento da coesão europeia. Pode ser que várias destas coisas não venham a acontecer, mas o facto de serem referidas como objetivos de política pelo futuro Presidente dos EUA seria completamente inconcebível há 10 anos, mesmo por Trump no 1.º mandato. Essas afirmações visam obter vantagens negociais e são sinal do "bullying" que pautará as relações políticas e económicas na nova era. Nesta nova ordem, as grandes empresas têm um poder enorme, mas ao mesmo tempo restringido. Enorme, pois, têm uma escala, recursos, competências e influência inimaginável há 50 anos. Por outro lado, estão completamente sujeitas aos caprichos e ordens dos governantes mais fortes dos países mais fortes, sejam eles da China ou outros regimes musculados, e, agora, dos Estados Unidos.

Este é um mundo perigoso e, digo com tristeza, que já vimos este filme antes no século XX e o final não foi feliz. E neste contexto prevejo que haja coisas que mudem no curto prazo em termos económicos, para além do óbvio aumento de investimentos na defesa e do reforço dos complexos militar-industrial-tecnológico:

- Não é possível haver a continuação da globalização económica e financeira nesta nova ordem mundial. Assistiremos à transformação da globalização em regionalização e à fragmentação de mercados financeiros. Uma consequência provável será o aumento de importância dos ativos de reserva verdadeiramente globais, nomeadamente os metais preciosos físicos como o ouro e prata e, eventualmente, os digitais como a bitcoin, pois os Estados não quererão deter ativos (moeda e títulos de dívida) de países com os quais competem.

- Será cada vez mais importante ter centros de decisão nacionais das grandes empresas. Num mundo de regras interessa pouco a nacionalidade de quem manda nas empresas. Num mundo da lei do mais forte isso é fundamental pois os líderes dos países podem interferir sem controlo na vida das empresas (diretamente nos regimes autoritários ou indiretamente nos regimes democráticos). Portanto os limites a fusões e aquisições entre empresas de países diferentes vão ser muito mais apertados.

- Os líderes procurarão reforçar o seu poder e reduzir o controlo à sua atuação, com o argumento de que assim poderem servir melhor o interesse e segurança do seus países ou da sua empresa. O argumento do interesse estratégico ou da segurança nacional será usado cada vez mais, de forma justificada ou não.

Os desafios para a União Europeia e para as empresas europeias neste contexto são enormes. Como baluarte da democracia liberal e da governação por regras, o modelo europeu vai ser testado e a forma de manter a autonomia estratégica da Europa vai requerer uma forte união interna e empresas europeias fortes. A união faz a força e a nova ordem mundial será dominada pelos mais fortes.

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