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A "blocalização" e o fim das empresas multinacionais

Num mundo "blocalizado", as empresas estarão cada vez mais subservientes ao poder político e serão usadas para extrair vantagens negociais. Os interesses públicos e privados misturar-se-ão cada vez mais, como já está a acontecer nos EUA. A mudança está em marcha. A "blocalização" é a nova ordem mundial.

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Adeus à globalização, bem-vindos à "blocalização" e ao início do fim do modelo de empresa multinacional.

A desastrada imposição de tarifas globais pela Administração Trump na semana passada levou a um "crash" nos mercados financeiros de todo o mundo, assustados com a perspetiva de um escalar de protecionismo e receosos de uma recessão global. Inesperadamente, assistiu-se também à queda do dólar americano, o qual serve tradicionalmente como ativo de refúgio em alturas de incerteza.

A incerteza continua muito elevada e os movimentos dos mercados nas próximas semanas vão andar ao toque dos tweets. É difícil de prever se Trump está simplesmente a aplicar globalmente a sua "Art of the Deal" lançando tarifas como salva inicial de um processo de extrair concessões de aliados e parceiros, iniciando agora negociações com cada país e recuando nas tarifas à mínima vitória, ou se ficará firme nas suas posições, forçando os países a negociações difíceis e arriscando uma escalada. Isso dependerá do nível de "lobbying" e pressão interna que sofrer, tendo as manifestações em larga escala nos EUA já começado. Neste jogo, as posições mais importantes são as da China e as da União Europeia. A China já fez saber que irá adotar uma posição de força numa lógica de "tit for tat". Resta saber a posição da União Europeia, que se prevê que seja forte, mas com mais "nuance", retaliando de forma dirigida em certos setores, incluindo os serviços digitais.

Embora as dinâmicas de curto prazo sejam difíceis de prever, os movimentos económicos de médio prazo são já evidentes. O mundo está a mudar de uma lógica de globalização para uma lógica de "blocalização" em que os movimentos económicos estruturais se vão reorganizar em torno de três grandes blocos económicos – EUA, União Europeia e China, com os restantes países num jogo de alinhamento estratégico entre estes blocos, sendo que alguns países terão dimensão económica e localização para terem autonomia estratégica (Índia, Japão, Brasil, Austrália, Turquia).

Mesmo que Donald Trump volte atrás nas tarifas, já não há retorno para este movimento de "blocalização". Não há retorno, pois a China ganhou dimensão e autonomia para jogar este jogo, que estrategicamente lhe interessa, pois está-lhe a ser oferecida de bandeja a desagregação da hegemonia americana. Daí a sua resposta firme às tarifas de Trump, mesmo arriscando dor económica no curto prazo. E não há retorno, pois, da parte da União Europeia, há um sentimento de total quebra de confiança nos EUA, e a confiança, uma vez quebrada, é difícil de repor. Esta quebra de confiança tem a ver com a Europa assistir a um retrocesso dramático nos valores e comportamentos da administração americana. E assistir à quebra de todas as regras de funcionamento de um estado de direito, a uma administração que incorpora os mais egrégios conflitos de interesse, que mente ou distorce a verdade, que repudia a ciência, que quer impor a todos os países, universidades e empresas o seu dogmatismo, e que procura aproveitar-se dos aliados para extrair ganhos de curto prazo. Ganhos esses que não se percebe se são dos EUA, se são interesses pessoais do próprio Presidente e da sua "entourage", ou interesses escondidos das amizades russas que financiaram a vida empresarial de Donald Trump. É isso que os europeus pensam – Donald Trump gosta mais da Rússia do que da Europa.

O bloco americano que Trump está a criar inclui Israel, a Arábia Saudita, e a Rússia, países com líderes autoritários ricos em recursos e/ou fortes militarmente com os quais ele pode fazer negócios milionários sem regras nem escrutínio. Países como a Argentina, a Turquia e a Índia poderão integrar a esfera de influência americana. Os seus dois grandes vizinhos da América do Norte - México e Canadá - ele quererá fracos e subservientes, e o Ártico, a América Central e as Caraíbas tratará como o seu espaço vital.

O bloco europeu será liderado pela União Europeia, que tentará formar alianças com países democráticos em todo o mundo, incluindo o Reino Unido, o Canadá, o Brasil, o Japão e a Austrália, tendo a Rússia como arqui-inimigo económico e militar. A União Europeia tentará preservar o apoio militar dos EUA e manter uma relação saudável com a China na área económica, ganhando tempo para se reforçar económica e militarmente. Tentará manter uma esfera de influência relevante no Norte de África e América Latina. O Reino Unido tentará ser a ponte entre o bloco americano e o europeu. A Rússia fará o mesmo jogo entre a América e a China, podendo ser um aliado cobiçado por ambos, pela sua força militar e fraqueza económica.

O bloco chinês irá estender a sua influência a toda a Ásia-Pacífico e tentará influenciar a África subsariana, procurando também de forma sistemática fazer pressão sobre Taiwan para voltar a incluir esta ilha na grande China. Tentará exercer influência sobre a Rússia para contrabalançar a sua aproximação à América. Terá uma relação tensa com a Índia, a qual verá como ameaça regional pela dimensão populacional semelhante, crescimento económico acelerado, laços com os Estados Unidos e competição pelos mesmos recursos naturais. Apesar da fraqueza económica recente e da hecatombe demográfica que atravessará, o regime chinês está confiante dada a evolução geopolítica a seu favor, a qual valida a estratégia que tem seguido.

Esta "blocalização" irá determinar o início do fim das empresas globais como as conhecemos, pois, a desconfiança entre os blocos será grande e os interesses económicos estarão subjugados a interesses geopolíticos. Importará muito saber quem são os donos efetivos das empresas e a qual bloco ou país estão associadas. Nesse caminho, a China foi mais previdente, pois, ao bloquear a entrada dos gigantes americanos da internet, criou uma indústria interna digital que a Europa não possui e que terá agora de construir. A China teve também duas décadas para criar um sistema autónomo face ao ocidente em múltiplos domínios económicos, industriais e financeiros. A Europa não o fez, pois integrou plenamente o modelo de globalização que os EUA estabeleceram. A Europa está assim numa posição difícil, mas tem ainda uma enorme força económica e sofreu um choque que pode alinhar as vontades. Tentará agora replicar o sucesso enorme que teve com a criação do Euro e da Airbus, aplicando um modelo semelhante a um conjunto alargado de setores e domínios para criar campeões europeus e infraestruturas autónomas europeias. A Europa irá assim começar a impor limites às redes sociais americanas, bem como criar os seus próprios modelos de IA e serviços de "cloud computing", bem como apostar em sistemas operativos críticos, incluindo na área financeira e de pagamentos. Esta lógica estender-se-á ao complexo militar-industrial, o qual cada bloco quererá ter sob controlo interno. Haverá também um foco renovado na exploração e fornecimento de recursos críticos ao bloco, incluindo contratos de longo prazo e armazenamentos estratégicos.

Este processo de "blocalização" terá momentos simbólicos e visíveis, como a venda do TikTok nos Estados Unidos a donos americanos e processos de cisões empresariais. Haverá também um processo mais lento e invisível de alteração de padrões de investimento das multinacionais, com um reforço das operações nas regiões do bloco a que pertencem e redução de investimentos noutros blocos, sendo que a internacionalização das empresas se fará mais por exportações a parcerias locais do que por investimentos diretos. Assistir-se-á à gradual perda da hegemonia do dólar americano como reserva mundial e o regresso do ouro como ativo refúgio e reserva mundial. E veremos a "blocalização" dos mercados financeiros, dado o risco de deter ativos em blocos rivais. Num mundo "blocalizado", as empresas estarão cada vez mais subservientes ao poder político e serão usadas para extrair vantagens negociais. Os interesses públicos e privados misturar-se-ão cada vez mais, como já está a acontecer nos EUA. A mudança está em marcha. A "blocalização" é a nova ordem mundial.

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