Opinião
O umbigo é apenas uma marca no baixo-ventre
É curioso como durante uma experiência de que gostamos nos podemos lembrar de algo de que não gostamos. Gostei muito de ler o livro de Julian Barnes "O Ruído do Tempo" - e só não digo que é muito bom, porque não tenho competência para decretar o que é bom em literatura.
Limito-me a dizer que gostei muito. E ao ler - sobretudo a descrição do medo de Chostakovitch, noite após noite, à espera que o venham buscar para a prisão, para o campo de trabalho e reeducação ou para a parede de fuzilamento, sentado no patamar para que os homens do NKVD não o vejam de pijama e para não incomodar a família se eles vierem -, recordei-me, como noutras leituras, do camarada Iossif Vissarionovitch, mais conhecido por Estaline, e de outros (maiores ou menores) aprendizes da mesma feitiçaria. E recordei-me também de como não gosto e nunca gostarei de pessoas que se acham (ou se dizem) ungidas. Pessoas cujo centro do mundo é o seu umbigo, e que se acham (ou se dizem, mesmo quando sabem que aí não estão) sempre do lado do bem.
Pessoas que julgam (ou proclamam) que têm uma missão, um desígnio. E que acreditam no aforismo (ou encolhem os ombros perante ele) que diz que quando cortamos madeira voam aparas. Pois é, voar voam, lá isso é verdade, é da natureza das coisas. O ponto está em saber que machado se usa e que aparas voam, e se mais ou menos aguçadas, para onde vão e quem atingem e de que modo. O ponto está sempre no "se" e no "como". Mas aos ungidos isso não importa, os fins é que são relevantes, as aparas que voam são uma necessidade, o caminho faz-se caminhando, até porque se está do lado do bem, e se assim é então sabe-se sempre que madeira cortar e como o fazer, e sabe-se até quando se deve reduzir toda a madeira a aparas. Desde que - bem entendido - nenhuma delas atinja o excelso e clarividente umbigo do ungido.
São pessoas que ou não têm amigos e se gabam disso, desconfiando de todos e isolando-se, ou que fingem e dizem tê-los, embora na verdade o afeto e o respeito lhes sejam conceitos estranhos, exceto no que respeita à marca de nascença que trazem no abdómen. Querem dominar tudo, pelo que amiúde acabam por se afastar de tudo. E acreditam que - na sua missão - devem contribuir para a engenharia das almas humanas. Porém, há nisso pelo menos dois problemas, como reflete Chostakovitch no patamar à espera de que o vão buscar - o que, aliás, acaba por nunca acontecer, porque o medo verga e leva à colaboração. Primeiro problema: muitas pessoas não querem que as suas almas sejam sujeitas a engenharia. Que lhes ponham proibições, aceitam, que as punam se as violaram, também, mas engenharias dispensam, mesmo que a tentativa de engenharia apareça a coberto de dizeres dóceis sobre o bem ou de dizeres graves sobre a virtude. E o segundo problema consiste em saber quem aplica a engenharia aos engenheiros e quem controla a bondade ou não dos cálculos que usam para as suas obras.
Pessoas assim houve e há várias. Alguns, poucos, chegam ao patamar de Estaline, muitos não, mas todos fazem e deixam mal pelo caminho, mais ou menos consoante o tempo e as circunstâncias em que vivem e cortam madeira, e também consoante lhes permitem, pois muitas vezes o seu crescimento e a sua ação dependem da inércia ou da colaboração de outros. E quanto mais inertes, distraídos ou colaborantes estivermos, e menos conscientes daqueles dois problemas, menores serão as barreiras contra tais ungidos, e mais facilmente seremos tragados pelo seu voraz umbigo.
Advogado
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