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Rui Patrício - Advogado 05 de Maio de 2021 às 09:20

O desmancha-prazeres (sobre o enriquecimento injustificado)

A grande inovação consiste em incriminar com base na não justificação ou explicação da origem do acréscimo patrimonial? Ora, se assim é – desculpem-me –, isso talvez seja obrigar à autoincriminação.

Peço desculpa, por duas razões. Primeira: na crónica de há um mês, dei a entender que publicaria agora a segunda parte de “Diversidade”. Mas não. Entretanto, outros temas se agigantaram, sobretudo temas de direito penal, área que ocupa o segundo lugar no pódio do número de entendidos por metro quadrado (o primeiro lugar ainda pertence ao futebol). Ora, embora eu seja só medianamente entendido (porque estudioso dos assuntos e advogado praticante), gostaria de meter a colherada num dos temas cimeiros, a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, ou outro nome qualquer – evocando O’Neill, “uma coisa em forma de assim”. Segunda razão do pedido de desculpas: das duas uma, ou as celebradas descobertas sobre este crime salvador consistem em dar uns toques no que já está na Lei de 2019, e não é assim uma coisa que mereça tanta excitação e a amorosa quase unanimidade (e que comoventes são o pensamento instantâneo e o acordo geral sob o jugo dos clamores, como se fosse outra vez 1793); ou então a inovação consiste em algo que talvez seja violador da Constituição e da lei (esses empecilhos à “limpeza da malandragem”). Vejamos, mas devagarinho, que eu demoro a entender o que outros incensam de um dia para o outro – além de, claro está, as minhas opiniões serem determinadas por tenebrosas intenções e por conspirações, como talvez sugira algum escrevente cabotino.

A grande inovação consiste em incriminar com base na não justificação ou explicação da origem do acréscimo patrimonial? Ora, se assim é – desculpem-me –, isso talvez seja obrigar à autoincriminação. Ou seja, uma coisa é impor a fulano ou sicrano que diga “tenho x e agora tenho y” (ou até “e vou ter z”), outra coisa é acrescentar a obrigação de dizer que “y veio de uma herança da tia, da lotaria, de um suborno ou de um negócio manhoso”, et cetera. Se acham que deve existir uma obrigação de autoincriminação, e que alguém deve ser punido por não confessar um delito (que neste caso justificaria ou explicaria o acréscimo patrimonial), pois estará porventura muito bem, mas então assuma-se isso, e viva-se com as consequências. Aliás, é o mesmo, mais ou menos, que defender (outra descoberta jurídica que encanta a nação, furiosa com “o caso”– sim, tudo isto é por isso) que é crime de fraude fiscal não declarar (confessando) rendimentos provenientes de crimes. Acham bem? Seja, têm o direito, mas eu não acho (“claro”, dirá uma ou outra figura do Portugal dos pequenitos, “não achas porque estás feito com eles”, e eu dou de ombros, e passar bem).

Da mesma forma que não acho bem o potro, a polé, e outras coisas admiráveis que ajudam a higienizar a sociedade, e vai tudo por junto, uma limpeza. E, já agora, talvez pensar em restabelecer o ordálio, não? Esse eficaz meio de prova da Antiguidade à Idade Média (embora talvez não tão simples quanto o “está-se mesmo a ver” da moderna Ciência do Táxi), também conhecido como juízo de Deus, que consistia na sujeição do suspeito (que pode ser qualquer um de vós, sabem?, e não apenas “a corja”) a elementos da natureza ou a meios de tortura, provando-se a inocência caso saísse incólume da experiência. Dava um resultadão, isso dava, e célere, e não havia suspeito de pulhice que escapasse. Estou a ver mal, não? É possível, ou até provável, porque eu cada vez vejo pior. Esclareçam-me, então – mas como se eu tivesse 13 anos (uma espécie de Adrian Mole do Direito) –, de que forma é que isto está tudo muito bem. Deve estar, eu é que sou burro (ou – dirão os muito espertos, claro – mal-intencionado). Ficarei à espera, e agradecido, mas expliquem com detalhe, e já agora com propostas de redação concreta das novas normas. Para generalidades e frases feitas, gritadas aos quatro ventos ou exibidas qual flor na botoeira, já (me) basta e já (me) enjoa. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, como sempre.

 

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