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Rui Patrício - Advogado 05 de Janeiro de 2021 às 10:20

“Trial by (and for the) media” - Parte II

A verdade, quer se queira ou goste quer não, é que não se pode atuar a pensar no modo como vai ser recebida a atuação. Isso não é soberania, não é dever, não é múnus, não é atuar em nome do povo.

(Continuando o texto de há um mês ...) Se é verdade - e evidente - que a cobertura mediática de "casos" tem muitíssimo impacto no modo como a comunidade perceciona a culpa ou a inocência de uma pessoa, não é menos verdade que a esfera extraprocessual de certos "casos" pode ter repercussão ou influência na vertente processual. Pode ter, e às vezes tem. Levo mais de um quarto de século de advocacia contenciosa intensa, participei e participo em casos mediatizados, e observo outros, e não sou nem cego, nem surdo, nem mudo, e também não estou para falinhas mansas ou salamaleques de salão. E digo que pode ter, e várias vezes tem - e de diversas formas, ditas ou não ditas. Pode-se dizer que não tem, seja por distração/desatenção ou desconhecimento, seja por hipocrisia, por receio ou por interesse. Mas tem.

 

"Primo." A questão existe, e é aliás da natureza das coisas. E fingir que não existe não nos leva a nada de bom. E não fui eu que descobri a pólvora, nem estou a ser original ou sequer muito atrevido. Mas o tema é pouco abordado e é ainda menos desenvolvido ou discutido, como se fazê-lo fosse mexer num tabu, abalar um dogma ou ofender uma sensibilidade. É um tema que teima. Teima em quase não ser tema. Mas vem nos livros, como se costuma dizer, e não compreendo (até compreendo, mas não aceito) como é que se vai passando de fininho pelo assunto. E por falar em livros, o ex-PGR Cunha Rodrigues, por exemplo, escreveu-o no seu recente "Memórias Improváveis" - que aliás é uma obra que vai muitíssimo além do memorialismo e que, em minha opinião, merece especial atenção, mormente os seus 14 capítulos finais. "A comunicação social ... exponencia a ambivalência do discurso judicial que é sensível às expectativas de justiça criadas pela mediatização" (pág. 462). E já antes o tinha querido significar (há mais de 20 anos...), e outros também, e mesmo assim não vejo o tema ter o tratamento que merece. Curiosamente, e para usar uma expressão feliz a que também alude o ex-PGR, numa época de tanto "valor de exposição", este assunto parece ter muito pouco. Ele há coisas...

 

"Secundo." Dizer que a questão existe, e olhar para ela, não decorre de - nem implica - quaisquer processos de intenção, juízos de menoridade ou atribuições de má-fé genéricos sobre os atores judiciários. Antes pelo contrário. Tem o significado - e tem o propósito - de contribuir para uma maior e melhor legitimação pelo procedimento e para (com uma séria separação do trigo do joio) um reforço da saúde da República, incluindo o papel incontornável que nela tem o sistema de justiça.

 

"Tertio." É tempo de, começando por enunciar e reconhecer a questão, tentarmos desenvolver e aprofundar os meios de a combater ou, ao menos, de a conter e manter dentro de limites aceitáveis, meios esses que são essencialmente três: (i) libertação dos atores judiciários do receio (para não dizer do medo) da leitura que os seus atos podem ter, tentando evitar que atuem, não em função do que lhes cabe e julgam certo, mas em função do que percecionam que será visto e recebido pelo "sentir social" como certo (que é dado pelos media e/ou pelas redes sociais, essencialmente); (ii) fundamentação, mas clara, esforçada, corajosa e percetível sobre as razões dos seus atos (e não precisa de ser extensa, pode ser curta; tem de ser é sobre o caso e as razões da decisão ...); e (iii) escrutínio dos atos de todos, mas escrutínio sério, com trabalho, com equilíbrio, sem estados de alma, sem a sedutora tentação da parangona e da graçola fácil, com uma tentativa de superar preconceitos, e também tendo presente que o escrutínio influencia ou pode influenciar o que se escrutina.

A verdade, quer se queira ou goste quer não, é que não se pode atuar a pensar no modo como vai ser recebida a atuação. Isso não é soberania, não é dever, não é múnus, não é atuar em nome do povo. Isso é populismo, ou plebiscito mal disfarçado, quando não simples falta de coragem para o cargo ou apetite pela popularidade. Tudo coisas que não são apenas fenómenos da esfera política em sentido estrito, e que, sendo nesta esfera menos boas, noutras podem ser mortais.  

 

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