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03 de Março de 2021 às 20:05

Aristóteles, Shakespeare e as Emoções (Para os meus alunos)

Ninguém desempenha bem uma função ou um papel, sobretudo se for eminentemente relacional, se não souber que as emoções são a chave.

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Só por desatenção (sobretudo às “lições da vida”) podemos ser surpreendidos pelo facto de um terço da “Retórica” - e, na minha opinião, o terço mais importante, digamos que o coração, “et pour cause” - ser dedicado às emoções (no seu sentido mais amplo). De facto, depois de no livro I da obra ter tratado principalmente da natureza da retórica e dos seus três géneros (deliberativo, judicial e epidíctico) e antes de no livro III se dedicar a uma espécie de manual de boas práticas (clareza, estilo, correção, solenidade, ritmo, metáfora, elegância, etc.), Aristóteles debruça-se no livro II sobre as emoções (e/ou os sentimentos, não em sinonímia mas em relação de criador-criatura) e sobre o seu papel essencial na retórica. Por aí desfilam a ira, a calma, a amizade e a inimizade, a vergonha e a desvergonha, a amabilidade, a piedade, a indignação, a emulação, a inveja, o temor e a confiança, os estádios da juventude e da velhice, a fortuna, o poder, etc. Não admira que assim seja, nada mesmo, pois a retórica, como praticamente tudo na vida, não é mais do que um exercício de ser com os outros - e, naturalmente, também consigo mesmo, antes de mais.

E Shakespeare é o bardo imortal, porquê? Pelo seu magistral domínio do inglês? Talvez, não sei, não tenho a mínima competência para avaliar. Pelo seu manejo exemplar das melhores regras da dramaturgia e pela alta arte poética? Idem. Tudo isso e muito mais, seguramente. Mas - para mim - muito pela mestria com que trata as emoções (e/ou os sentimentos) e as desenha e erige como cabeça, tronco e membros das suas personagens (das suas “pessoas-tipo”) e, também, como motores da história e da estória. Shylock não tem século nem geografia, nem Falstaff, nem Otelo, Iago, Hamlet ou Lady Macbeth. Lear e as suas filhas são de qualquer tempo e de todos os lugares. E os reis - os da “Henriad” e os outros - importam pouco enquanto tal, e seja qual for a guerra ou a batalha, o que releva é o seu domínio das emoções e/ou a sua submissão a elas. Os nomes das guerras, aliás, essas e outras, são todos um pouco enganadores. Todas se deveriam chamar, pelo menos, da Soberba, da Avareza, da Luxúria, da Gula, da Preguiça, da Inveja e da Ira.

Realmente, ai de quem não domine o tema das emoções, as suas e as do(s) outro(s), não tanto no sentido de domínio-senhorio (até porque é uma empreitada e tanto), mas mais no sentido de domínio-consciência da importância. Ninguém desempenha bem uma função ou um papel, sobretudo se for eminentemente relacional, se não souber que as emoções são a chave. Um político deve saber de política, de filosofia e de tantas outras coisas, mas se não souber alguma coisa sobre as ciências das emoções (e são tantas, da psicologia à antropologia, da comunicação às neurociências, da biologia à sociologia, “inter alia”) e, não menos importante, sobre elas mesmas, não vai longe. Um gestor idem, um professor também, um advogado, um médico, e “tutti quanti”.

Ai de quem é só técnico! Ai de quem não compreende e cultiva a importância da abertura à vida e ao mundo. Ai de quem olha para os manuais (ou outras leituras mais ligeiras) e decora títulos e frases sobre “soft skills”, inteligência emocional e afins, sem perceber que não são nem coisas modernas, nem um acessório, nem um mais. São de todos os tempos, são um principal, e são um antes. Um antes de tudo, e uma determinante-chave (embora não a única) para muitíssimas coisas, das mais prosaicas às mais complexas. Na vida privada e na vida pública, e numa e noutra com a mesma importância. Viver é tão importante quanto estudar. Se é que às vezes até não é um pouco mais. Veja-se, por exemplo, e entre muitos outros, o ensino de Eça e de Lourenço sobre “as saias de Elvira”.

 

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