Opinião
Vacinar a demagogia
Julgo que faz todo o sentido que titulares de órgãos de soberania e até outras pessoas que desempenham funções de Estado sejam vacinados prioritariamente. Por uma razão simples, que é assegurar a continuação desses órgãos e dessas funções, que são essenciais para a vida em comunidade.
Em tempos em que consultar o doutor Google é o alfa e o ómega do “conhecimento” e em que o que não está “em rede ou nas redes” não existe, permitir-me-ão que comece por recorrer à Wikipédia. Lá se diz – e parece-me que bem, por acaso, e nem sempre é o caso – que demagogia é um termo de origem grega que significa “arte ou poder de conduzir o povo”, sendo uma forma de atuação política na qual existe um claro interesse em manipular ou agradar às massas, com a utilização de argumentos apelativos, emocionais ou até mesmo irracionais. Vem isto a que propósito? Pergunta certeira, não só porque cabe ao escriba clarificar ao que vem, mas também porque há por aí tanto que dizer sobre a demagogia que este texto poderia ser sobre muitos temas.
Convém, pois, dizer que vem a propósito da vacinação de membros de órgãos de soberania e outros “altos cargos ou funções” contra o SARS-CoV-2. Tem havido uma intensa discussão sobre o tema, e muito rasgar de vestes sobre ele, a ponto mesmo de pessoas que fazem parte do grupo eleito para a vacinação terem vindo a terreiro anunciar a sua autoexclusão. Ora, discordo das vozes contra a vacinação prioritária destas pessoas, e penso que se trata de um exemplo acabado de demagogia. Não é falta de respeito por opinião contrária, nem sou sobranceiro ao afirmá-lo – diga-se e sublinhe-se, pois ter opinião e manifestá-la de forma clara e firme às vezes é levado à conta de sobranceria, especialmente quando o que se diz desagrada, denuncia ou não procura a todo o custo “equilíbrios”. Cada qual pensará o que bem entender, e admito que eu possa não ter razão. Mas é a minha opinião, e aqui a manifesto.
Julgo que faz todo o sentido que titulares de órgãos de soberania e até outras pessoas que desempenham funções de Estado sejam vacinados prioritariamente. Por uma razão simples, que é assegurar a continuação desses órgãos e dessas funções, que são essenciais para a vida em comunidade. Também faz obviamente sentido priorizar grupos de especial risco, seja pelas tarefas que desempenham, seja pela sua vulnerabilidade, mas isso não significa que nos grupos prioritários não devam ser incluídos membros de órgãos de soberania e titulares de outras funções de Estado. Defender o contrário é, em minha opinião, uma de três coisas: ignorar a importância desses órgãos e funções, ou até mesmo desprezar o Estado enquanto garante da vida social; misturar alhos com bugalhos; ou pura e simples demagogia.
De facto, ou se está a desprezar a importância que a continuidade das funções estaduais, que são asseguradas por pessoas concretas, tem sempre, e em especial em situações de crise. Ou se está a confundir a prioridade de vacinação de pessoas com essas funções com uma outra discussão, e um outro escrutínio, que se prendem com saber se o grupo deve ser maior ou menor, se deve incluir também uns ou só outros, e se há ou não abusos e fraudes (que são questões muito pertinentes, mas que não põem em causa o princípio de que existe um grupo de titulares de certos cargos – rigorosamente definido – que deve ser prioritariamente vacinado). Ou, então – como temo que esteja a acontecer em certas tomadas de posição – está-se a dizer o que se julga ser mais agradável de ouvir, mais popular, mais atraente ou mais consentâneo com o medo, a angústia, a desorientação ou o ressentimento que as pessoas sentem. E isso tem um nome: demagogia. Com todas as letras. E não costuma conduzir a bons resultados. Não resolve a questão da vacinação a curto prazo, e a longo prazo não resolve coisa nenhuma, antes pelo contrário. Acho eu.