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Opinião
07 de Maio de 2019 às 10:30

Conflito e concordância

É óbvio e pacífico afirmar que - desde o princípio dos tempos humanos - há conflitos e colisões entre valores, bens, direitos e interesses. O conflito é, aliás, tão natural na vida comunitária como o respirar é natural na existência individual.

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E óbvio e pacífico é também reconhecer que os traços de conflito são mais marcados em certos momentos históricos e contextos, e que a sociedade atual é muitíssimo conflitual - por múltiplas e complexas razões que agora não cabe aqui enunciar. O que logo leva o jurista a recordar uma ideia básica que se aprende nos bancos da universidade e que acompanha o sistema jurídico desde há muito tempo, a concordância prática. Esta ideia essencial diz-nos que, havendo colisão, deve-se favorecer decisões através das quais ambos os direitos (ou bens constitucionais), em conformidade com a possibilidade do seu equilíbrio, devem ser garantidos na sua essência, tentando-se que o núcleo fundamental de cada um não seja sacrificado e seja realizado. E, não sendo isso possível, um deve prevalecer sobre o outro da forma menos lesiva para o que é sacrificado ou afastado, de modo a que este não seja totalmente anulado.

 

Ora, isto - que aqui se formula de forma simples, e sem entrar nas complexidades inerentes - implica que a análise seja feita sempre em concreto, e não de modo abstrato, e que seja ponderada e cauta em cada caso, apreciando não só os termos do conflito, mas também a unidade do sistema e a sua tentada harmonia e otimização. Relativamente fácil de formular, mas, sobretudo em certos casos, difícil de alcançar. E trata-se de uma tarefa que cabe por natureza e definição, numa arquitetura de Estado de Direito, aos tribunais, exigindo, por um lado, juízes independentes, cultos, abertos ao mundo, íntegros e ponderados, e, por outro lado, um processo onde avultem princípios essenciais como o contraditório, a igualdade de armas e todos quantos assegurem uma legitimação pelo procedimento. Tudo de modo a que o conflito seja resolvido de uma forma a que os custos sejam individual, social e sistematicamente suportáveis, reconhecíveis e aceitáveis.

 

Contudo, esta tarefa e esta responsabilidade de ponderação e de solução moderada e equilibrada dos conflitos concretos não cabe apenas aos tribunais. Cabe, claro, e antes de mais, ao legislador, mas igualmente compete a cada um de nós, como atores de cidadania. Julgar que, na vida geral em sociedade e nos papéis concretos que nela adotamos e vivemos, estamos isentos de ser a primeira linha deste esforço de concordância prática constitui um erro crasso, que leva a um aumento do conflito e a uma irritação de colisões que pode chegar a tal ponto que a vida em comum se torna insuportável e em que a intervenção judicial já não é suficiente, ou sequer possível, para assegurar "os básicos" da vida coletiva.

 

E a verdade é que cada um de nós não consegue tentar este difícil exercício se, por um lado, não tiver noção da sua absoluta necessidade, e, por outro, se não estiver consciente de que os outros têm direitos, interesses e pontos de vista legítimos e atendíveis. O que implica, antes de mais, duas coisas que vejo pouco (com preocupação) na nossa vida coletiva: uma, a capacidade de colocação no lugar do outro e de compreensão desse lugar, havendo disponibilidade para o reconhecimento do conflito e dos custos da sua resolução em cada caso; outra, uma consciência de direitos proporcional à consciência de deveres, sem que a primeira se sobreponha à segunda. Atentemos nisto, inscrevendo-o à cabeça da nossa "to do list" quotidiana.

 

Advogado

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