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Opinião
31 de Julho de 2017 às 20:40

A insustentável leveza do arguido

Se a mera constituição como arguido desse, sistematicamente, para demissões de cargos políticos ou empresariais, então estaria encontrado o caminho, pelo menos hipoteticamente, para governar através dessa constituição.

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Perguntou-me um cliente, gestor de topo de uma empresa relevante, se devia demitir-se por ter sido constituído arguido num processo criminal, um daqueles (e são tantos, cada vez mais) em que o foguetório mediático é intenso, e mais denso e relevante do que a realidade processual. Disse-lhe assertivamente que não. Que não devia, e até me atrevi a dizer-lhe que não podia. É claro que cada pessoa terá razões pessoais e/ou de contexto para tomar decisões, e cada qual sabe de si, havendo também casos e casos, mas a minha opinião, em geral e objetivamente, só pode ser a de que a constituição como arguido não deve, e não pode, levar à demissão, seja de cargos políticos, seja de cargos empresariais.

 

Primeiro, porque, na pureza das coisas, ser constituído arguido significa apenas e só que se está a conferir, a alguém que é suspeito, um estatuto que visa dotá-lo de uma presunção de inocência e de amplos meios de defesa. Bem sei que isto é na pureza das coisas e que, com a crescente mediatização de processos, ser arguido passou a significar uma forte presunção de culpa, às vezes mais carregada de negro do que a peste. Aliás, felizmente que, depois de 19 anos felizes, deixei de ser docente universitário, para não correr o risco de ensinar, pelo menos, uma mentira, a de que ser constituído arguido "é bom", por ser uma garantia. Simbolicamente, deixou de o ser, e passou a ser "mau", muito mau. Mas isso não me faz mudar de opinião sobre demissões, antes pelo contrário, pois quanto mais demissões, mais simbolismo negativo sobre ser arguido, numa espiral incontrolável, à qual todos temos obrigação de resistir, especialmente quem tem certos cargos e responsabilidades. É sabido, desde o princípio dos tempos, que o medo é um general poderoso, talvez o mais poderoso de todos.

 

Segundo, porque às vezes acontece que a constituição de arguido é leviana, e que não se baseia, como manda a lei, numa fundada suspeita, ou porque a suspeita não tem fundamento bastante, ou, pior, porque tal constituição se destina a servir finalidades processuais não legítimas para esse fim, como seja, entre outros exemplos possíveis, a de possibilitar buscas. E quanto à hipótese de alguma vez se destinar a servir finalidades extraprocessuais, prefiro nem pensar nisso. Seja como for, essa hipótese de constituição leviana ainda faz recuar mais quanto a cenários de demissões. E deveria, tal como a primeira e principal razão que apontei, ter levado no passado e levar no presente a que houvesse cuidado na sociedade portuguesa sobre o modo como se usa o estatuto de arguido para esgrimir opiniões, tirar consequências políticas ou empresariais, e deveria cobrir de vergonha (e até um certo receio, pois nunca se sabe o que sai das caixas de Pandora quando nos bate à porta) quem no passado usou esse estatuto de outros como arma ou instrumento político.

 

Finalmente, há uma terceira razão, que tem que ver com a separação de poderes e, mais, com a saúde da República. Se a mera constituição como arguido desse, sistematicamente, para demissões de cargos políticos ou empresariais, então estaria encontrado o caminho, pelo menos hipoteticamente, para governar através dessa constituição, bastaria constituir como arguido quem quiséssemos ver arredado de tais cargos. Já não seriam as categorias de pensamento de Parmênides ou Nietzsche a que alude o título do célebre livro de Milan Kundera, seria um outro pensamento, esse sim pior do que a peste. Embora apenas uma hipótese, aliás certamente muito remota, só pensar nisso basta para travar todas as demissões.

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico 

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