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15 de Abril de 2020 às 20:47

Esperança, agressividade e equilíbrio

Na religião que eu professo, há uma orientação muito importante que é a de cada um pensar no que sentiria se estivesse no lugar do próximo. Se isso for feito, por todos e por cada um, certamente as coisas serão ditas de uma forma diferente.

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As palavras deste título, nos tempos que correm, são de complexa conjugação. Mas importa sublinhar, especialmente nesta época, que o conceito e o significado da vida exigem sempre, por pequena que seja, uma componente de esperança. A agressividade na comunicação não serve a ninguém, nem a quem faz a comunicação, nem a quem a recebe. Os tempos atuais, infelizmente, trazem notícias brutais, mas há que falar dos assuntos como deve ser. Mesmo quem vive em países que estão em guerra tem esperança de que chegue a paz, e pensa sempre que pode chegar em breve. Quem é refugiado e vive em tendas com milhares de pessoas, em zonas fronteiriças europeias, acreditará que o seu assunto se irá resolver.

A maneira como se fala na crise atual para as pessoas com mais de 70 ou 80 anos (ou ainda mais), nunca se dizendo que há uma percentagem, ainda assim muito considerável, de pessoas dessas idades que foram contagiadas pelo vírus e se salvaram, não pode ser aceite. Na religião que eu professo, há uma orientação muito importante que é a de cada um pensar no que sentiria se estivesse no lugar do próximo. Se isso for feito, por todos e por cada um, certamente as coisas serão ditas de uma forma diferente. Não está em causa que haja maior risco numas idades do que noutras, ou em pessoas que têm determinadas doenças crónicas do que naquelas que não as têm. E não está em causa também que se façam apelos especialmente dirigidos às pessoas que estejam nessas situações. Isso é uma coisa. Outra é aquilo que podemos chamar de fatalismo etário, que arrasa as pessoas e lhes tira qualquer esperança.

Não falo especialmente de políticos, nem de jornalistas, nem de especialistas. Falo para todos os que comunicam com algumas ou muitas pessoas. Deve-se falar verdade? Sem dúvida, mas em tudo na Vida se deve tentar que haja equilíbrio e sensatez.

Tudo o que está a acontecer já é muito difícil e será muito difícil. As pessoas precisam de se mentalizar para tudo, aquilo que está a mudar e o que vai mudar, porque as mudanças vão ser muito intensas (lá está, eu podia dizer violentas, mas digo intensas). O distanciamento, nos locais de trabalho e nas casas, as máscaras, as viseiras, o controlo dos dados pessoais, tudo vai ser muito complexo. Como é a espera pela vacina, ou pela terapia que cure. Mas também aí os humanos querem ter esperança de que uma das duas ou as duas cheguem mais depressa do que se pensa. É importante falar verdade? É essencial, seguramente. Mas a verdade que alerte, que avise, que exija, que informe. Mas que se evite a verdade que, pura e simplesmente, destrói as forças anímicas mínimas de que as pessoas e as sociedades precisam.

Quando se fala de que alguma reabertura, algum regresso, algum recomeço, se pode dar, diz-se que em maio, pense-se que as pessoas não podem estar, nessa altura, sem forças para esse tempo novo. O que disse sobre a linguagem no plano da saúde, aplica-se também ao plano económico. Que não se passe o tempo a anunciar o terrível. Fale-se também do que tem de ser construído ou reconstruído e debata-se e entreviste-se sobre todo esse tema.

A propósito de saúde e da comunicação nessa área, já vi espaços noticiosos contarem duas ou três histórias deliciosas de velhinhas de mais de 100 anos que se curaram do vírus. É isso mesmo. O equilíbrio: fazer esse balanceamento entre a comunicação duríssima e aquela que dá esperança. Recordo que iniciei funções como provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em setembro de 2011. Era uma crise económica gravíssima, não havia praticamente uma única obra em Lisboa, de construção nova ou de reabilitação. Estava tudo parado, e em muitos prédios, em muitas ruas, as casas tinham placas a dizer “vende-se”. Famílias com pai e mãe no desemprego, pessoas que perderam as casas por não puderem pagar os empréstimos, uma débacle. Apurei, então, que a Santa Casa tinha uma série de licenças de obras, na câmara, que podia levantar por já estarem aprovadas. Mandámos levantá-las todas e lançar as respetivas obras.

E a razão, na altura, teve também que ver com esperança. Era importante as pessoas passarem pelas ruas de Lisboa e verem que, no meio daquele desconsolo, já havia sinais de que podia chegar um tempo melhor, que se podia ter alguma esperança. E chegou. Todos sabemos que esta crise não é só económica e que tem esta origem e dimensão sanitária tão complicada. Por isso mesmo, por maioria de razão, pela especialíssima sensibilidade envolvida, mais se dispensa a agressividade a comunicar e mais se exige equilíbrio e esperança. Equilíbrio e esperança são compatíveis com a verdade ou, dito de outra maneira, a verdade, mesmo quando é dura, não exclui, antes exige, esse equilíbrio e essa componente de esperança.

 

Já vi espaços noticiosos contarem duas ou três histórias deliciosas de velhinhas de mais de 100 anos que se curaram do vírus.
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