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Opinião
12 de Abril de 2017 às 20:57

Certamente, nunca (I)

A questão da possibilidade colocada às misericórdias portuguesas, incluindo a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), para entrar no capital da Caixa Económica Montepio Geral provocou um aceso debate.

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A sociedade de hoje é muito leviana na maneira como, muitas vezes, aborda assuntos importantes. É tão leviana e tão precipitada que, às vezes, esquece do que aconteceu consigo própria. Faz impressão ouvir algumas intervenções e ficarmos na dúvida sobre quem estará ligado à realidade ou desligado dela: se é aquele que estamos a ouvir que perdeu aquela ligação ou nós. Pelas intervenções ouvidas esta semana, quem esteja de fora é levado a concluir que nunca a SCML teve participações accionistas, que nunca fez investimentos em instituições financeiras, que nunca os fez em bancos ou em entidades a eles ligadas, ou em companhias de seguros.

 

Falou-se e pode-se equacionar tal situação em duas perspectivas de análise possíveis: a da natureza da Instituição e dos seus princípios e valores ou então, em segundo lugar, a do risco inerente. Uma questão é a do risco que é, obviamente, importante, mas é diferente. Algumas intervenções escutadas falaram do quanto a participação da Misericórdia na estrutura accionista de uma instituição financeira seria contrária à sua natureza e aos seus estatutos, aos seus princípios e aos seus valores, porque a Santa Casa só pode tomar opções ou entrar em instituições de pobres ou que tenham que ver com os mais desprotegidos. Quem tenha ouvido essas intervenções parte pois do princípio de que os seus autores nunca estiveram em governos e, muito menos, em ministérios da tutela da Santa Casa, que tenham autorizado a compra pela Misericórdia de percentagens do capital de instituições financeiras. E que, portanto, um ministro de um Governo actual atrever-se, sequer, a admitir essa hipótese só pode ser censurado por quem nunca fez nem nada parecido, quanto mais autorizar decisões concretas da Santa Casa para investimentos dessa natureza.

 

Ouvi também uma intervenção, até equilibrada, de alguém que contou ter trabalhado na SCML e que também expressou essa posição, de que tal opção seria contrária aos estatutos e à natureza da Instituição, até porque teria estado envolvido no projecto desses mesmos estatutos. Parte-se pois do princípio de que também nessa época os responsáveis da SCML referidos nessa intervenção nunca fizeram qualquer opção desse tipo nem foram responsáveis por uma das Mesas (administração) que mais decisões dessa natureza tomou.

 

Dos documentos de uma dessas épocas pode-se citar, entre outros, este texto muito interessante: "A Misericórdia de Lisboa não tem nem pode ter como fim imediato a geração de lucro financeiro. Todavia, e analogamente ao que acontece com instituições e mecanismos financeiros de fomento ou desenvolvimento, podemos descortinar como fim mediato a obtenção, minimamente, e neste caso, de receitas do seu património que se compatibilizem com a consecução dos seus nobres e vastos objectivos. A esta luz, há que maximizar a rentabilidade patrimonial da SCML, de forma compatível com aquelas finalidades… Uma maior flexibilidade operacional na escolha das melhores formas de alcançar aquele desiderato."

 

O parecer de um jurista da Casa foi feito na época em que a Santa Casa não era como hoje, entidade de direito privado, mas pior ainda, para o efeito, instituto público. Há muitas pérolas documentais sobre este assunto, mas não se depreenda deste exercício que aqui faço de chamada de atenção à memória qualquer inclinação da minha parte que mude o que até hoje disse sobre a matéria.

 

O que me faz impressão é que vivemos uma época em que parece esgotada a possibilidade de reflexão na maioria das dimensões e domínios que dão corpo à nossa sociedade. Vivemos sustentados na débil imediatez dos juízos, o que constitui uma verdadeira armadilha à percepção da verdade.

 

Advogado

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