Opinião
O primeiro-ministro foi muito imprudente ao convidar Miguel Alves para o Governo
No seu espaço de opinião habitual na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre a demissão do ex-secretário de Estado Miguel Alves, a inflação, as rendes, as eleções intercalares nos Estados Unidos, entre outros temas.
INFLAÇÃO, PENSÕES E RENDAS
- O INE divulgou o valor da taxa de inflação homóloga em outubro: 10,1%. Mas divulgou mais:
- Primeiro: a classe de produtos onde a subida de preços foi maior no último ano é a classe da alimentação (18,9% de variação homóloga);
- Segundo: os produtos alimentares registam uma subida de preços ininterrupta desde agosto de 2021 (mesmo antes da guerra);
- Terceiro: os mais pobres são os mais afectados com esta situação, o que contribui para agravar as desigualdades sociais.
- Pensões: o Governo decidiu dar um bónus extraordinário de meia pensão aos reformados e pensionistas. Mas ficaram de fora os reformados da banca. Só que há agora uma questão nova: esta medida será inconstitucional?
- O Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários pediu um parecer jurídico sobre esta questão. O autor é o professor Rui Medeiros.
- Segundo esse parecer, a decisão do Governo é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade. Segundo o parecer, todos os reformados, incluindo os bancários, devem ser contemplados com o bónus da meia pensão. Todos foram afetados pela inflação.
- Resta agora ao Governo decidir: ou corrige a situação, alargando a medida aos reformados bancários; ou o TC pode vir a ter de tomar uma decisão sobre a eventual inconstitucionalidade da decisão.
- Rendas: é imperativo rever a injustiça:
- O Governo colocou um tecto de 2% ao aumento das rendas. Muito bem para os inquilinos mais frágeis. Mas faz algum sentido que esta medida proteja também inquilinos que são grandes empresas (Altice, EDP, Galp, BP)? É o que está a suceder.
- A lei devia ser revista para proteger só os mais pobres e vulneráveis.
MERCADO REGULADO DE ENERGIA
- Tenho chamado a atenção para o flagelo do custo da energia, desde logo para as famílias mais pobres. É um problema sério. O Governo, há dois meses, tomou uma decisão importante: permitir que os consumidores de gás passem do mercado livre, mais caro, para o mercado regulado, com tarifas mais baixas. Como foi a evolução nestes dois meses?
- Até setembro deste ano, 85,8% dos consumidores estavam no mercado livre. Só 14,2 no mercado regulado. Agora, em novembro, a relação mudou: há agora 79,2% de consumidores no mercado livre e 20,8% com tarifa regulada. No fundo, em dois meses, há mais 104 mil consumidores no mercado regulado. O que é pouco.
- É natural que esta tendência venha a reforçar-se: afinal, o mercado livre é agora mais caro que o mercado regulado. Vejamos um exemplo: para um consumidor com dois filhos e sem aquecimento central, o custo no mercado livre é neste momento 80,7% mais caro que o custo do mercado regulado (299,76 euros de custo anual na tarifa regulada, contra 541,76 euros no mercado livre).
- Por que é que não há então mais consumidores a fazer a transição?
- Primeiro, talvez por desconhecimento das vantagens. O que requer, portanto, uma boa campanha de esclarecimento e informação.
- Segundo, porque pode haver consumidores com contratos duais – gás e eletricidade – que lhes garantissem melhores condições;
- Finalmente, porque outros consumidores podem eventualmente dispor de melhores ofertas comerciais. Afinal, cada caso é um caso.
A SAÍDA DE MIGUEL ALVES
- A demissão deste secretário de Estado era uma questão de tempo. Ele estava a ser contestado por todo o lado: à direita e à esquerda, mesmo dentro do PS. A acusação que lhe foi movida pelo Ministério Público num outro processo só veio acelerar a demissão. Este é um caso de manifesta imprudência política: do primeiro-ministro e do ex-scretário de Estado.
- O primeiro-ministro foi muito imprudente ao convidar Miguel Alves para o Governo. Sabendo que o autarca era arguido em duas investigações, o primeiro-ministro não o devia ter trazido para o Governo: primeiro, porque a sua presença seria sempre tóxica; segundo, porque a qualquer momento podia ser acusado e ter de sair. A imprudência do primeiro-ministro criou-lhe mais um problema no Governo e arruinou por anos a carreira política de Miguel Alves.
- O ex-secretário de Estado foi também muito imprudente. Alguém que está sob investigação não deve ir para o Governo. Mesmo que seja convidado e tenha muita vontade de aceitar. Deve perceber que, entrando no Governo, passa a ter um escrutínio maior. E com um escrutínio maior os problemas agravam-se. Foi o que sucedeu. Agora, perdeu tudo: não é governante, nem deputado, nem Presidente de Câmara. É o que dá ter muita soberba e muita pressa de chegar ao poder.
- O Ministério Público é muito democrático. É que no PSD sucedeu esta semana algo de semelhante: um dirigente nacional, Rodrigo Gonçalves, foi alvo de buscas num processo de investigação. O que prova que ninguém, à esquerda ou à direita, está acima da lei. Luís Montenegro e o próprio fizeram o que é correto: decidiram a suspensão de funções. Afinal, uma suspeita pode diminuir politicamente o visado e contaminar o órgão de que faz parte.
O ESTADO DO GOVERNO
- É difícil encontrar um Governo com tantas polémicas em tão pouco tempo: foi com Pedro Nuno Santos; com Fernando Medina; com a Ministra da Agricultura; com a demissão de Marta Temido; com o Ministro Costa Silva; agora, com Miguel Alves. Porquê tantos casos? A meu ver, por quatro razões principais:
- Primeiro: muito tempo de poder. Os ciclos governativos longos são democráticos. Mas geram no final muita displicência, descoordenação, falta de rigor e facilitismo. O que está a suceder agora com o costismo foi o que também sucedeu na parte final do cavaquismo e do guterrismo.
- Segundo: abuso da maioria absoluta. As maiorias absolutas têm grandes vantagens. Desde logo a estabilidade e a governabilidade. Mas o seu abuso é um perigo. Gera-se uma ideia de impunidade, o que é fatal. Um governo que se acha "o dono disto tudo" começa a cometer erros e a divorciar-se da opinião pública.
- Terceiro: António Costa já não é o que era. Já não tem a mesma energia, a mesma paciência, a mesma capacidade de coordenação e de liderança que tinha no início. Está farto. É humano e normal. Vi acontecer o mesmo com Cavaco e Guterres, ao fim de muitos anos.
- Finalmente, a agravar a situação, quando não há causas, há casos. O vazio tem de ser preenchido. Só que as causas mobilizam. Os casos desgastam.
- Entretanto, o Governo vai ter de se confrontar com o novo líder do PCP. Quatro destaques do discurso inicial de Paulo Raimundo: no conteúdo, nada muda, o "mesmo compromisso de sempre"; no estilo, o discurso é mais vivo e acutilante; na iniciativa, foi bonita e justa a homenagem a Jerónimo de Sousa; na mensagem, a mesma hipocrisia sobre a guerra na Ucrânia: o PCP não consegue condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia. Inacreditável.
NOVA NOMEAÇÃO POLÉMICA
- A Ministra Mariana Vieira da Silva nomeou para seu assessor um jovem de 21 anos, licenciado em Direito, sem experiência profissional, mas com um salário de quase quatro mil euros. Esta nomeação irritou muito boa gente, dentro e fora do Partido Socialista.
- Há que dizer três coisas:
- Primeiro, infelizmente esta prática não é exclusiva de um governo socialista. Sejamos sérios e honestos: no passado, governos do PSD e do CDS fizeram nomeações semelhantes. É mau, mas é verdade.
- Segundo, esta nomeação não é ilegal, mas é absolutamente imoral. Não é ilegal porque os governantes podem nomear livremente os membros dos seus gabinetes. Mas é imoral. Um jovem sem qualquer experiência profissional ganhar muito mais que um professor, um médico, um enfermeiro, ou outro profissional, choca as pessoas e gera uma sensação de injustiça, compadrio e desigualdade.
- Terceiro, no passado estas situações eram "toleradas". E não tinham o escrutínio que têm hoje. Atualmente, as pessoas estão mais sensíveis. Não aceitam estas situações de privilégio. Os governantes precisam de ter mais cuidado. Querem nomear assessores da sua confiança? Façam-no. Têm esse direito. Mas, ao menos, reduzam o salário para evitar perceções públicas de injustiça, desigualdade e privilégio. É uma questão de bom senso.
ELEIÇÕES INTERCALARES NOS EUA
- As eleições nos EUA tiveram duas conclusões interessantes:
- Primeiro, manteve-se a "regra" dominante neste tipo de eleições: quem está no poder perde. Por isso, os Republicanos melhoraram, embora pouco, o seu resultado em relação às eleições de 2020.
- Segundo, não se confirmou nem a "hecatombe" dos Democratas nem a vitória esmagadora dos Republicanos. Os Democratas aguentaram e os Republicanos, que tinham condições excelentes para "esmagarem", desperdiçaram a oportunidade de uma vitória concludente.
- Há três grandes vencedores nestas eleições:
- Joe Biden. Não ganhou as eleições. Até pode perder o controle na Câmara dos Representantes. Mas ganhou às expectativas, o que em política é essencial: a expectativa era a de ser esmagado. Não foi. Ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com Obama em 2010.
- Vladimir Zelensky. Não disputava as eleições, mas era parte interessada. Uma forte vitória dos Trumpistas podia "enfraquecer" o apoio dos EUA à Ucrânia. Este pesadelo não aconteceu.
- Ron de Santis. O Governador da Florida teve uma vitória esmagadora. Ganhou o estatuto de candidato presidencial em 2024. Pode ser ou não ser. Mas colocou-se na pole position, irritando Donald Trump.
- E há dois vencidos claros:
- Donald Trump. Empenhou-se em fazer destas eleições a rampa de lançamento para a sua candidatura em 2024. Até pode ser candidato. Mas perdeu força: os Republicanos não esmagaram; vários candidatos "seus" perderam; e tem agora a sombra do Governador da Florida.
- Vladimir Putin. O Presidente russo jogava tudo em "dividir para reinar". Queria uma vitória republicana. O reforço do seu "amigo" Trump. A quebra do consenso em relação à Ucrânia. Perdeu em toda a linha.