Opinião
Marques Mendes: "Correu quase tudo bem a Montenegro"
No seu habitual espaço de opinião na SIC, Luís Marques Mendes elege o primeiro-ministro como figura nacional do ano, a par de António Costa, por ter chegado à presidência do Conselho Europeu. Num balanço do ano, o comentador assinala também os factos positivos e negativos de 2024.
A CRISE QUE AGRADOU A TODOS
- A crise política que terminou com as eleições de 10 de março é o grande facto político do ano. É uma crise inédita: nas causas e nas consequências. Nas causas por que se fundou num insólito comunicado da PGR. Nas consequências porque, estranhamente, agradou a todos os principais protagonistas do regime:
- Agradou a Luís Montenegro. Chegou a PM mais cedo do que imaginava e fez o PSD regressar ao poder, depois de oito anos de oposição difícil.
- Agradou a Pedro Nuno Santos. Chegou, finalmente, a líder do PS, objetivo que perseguia há anos. E ainda teve o mérito de vencer as eleições europeias.
- Agradou a António Costa. A crise permitiu-lhe chegar ao cargo de Presidente do Conselho Europeu. Uma ambição que corria o risco de não poder satisfazer se a legislatura tivesse ido até ao fim.
- Agradou a André Ventura. Conseguiu eleger 50 deputados nas eleições de 10 de março. Uma vitória surpreendente.
- Agradou, finalmente, a Nuno Melo. Fazendo coligação com o PSD, o CDS conseguiu regressar ao Parlamento. Se não tivesse havido a coligação, o risco de não eleger deputados era enorme.
- Uma crise política tem, em regra, mais vítimas que beneficiários. Com esta crise sucedeu exatamente o contrário. Quase todos os principais protagonistas tiraram vantagens desta crise. Algo inédito e insólito. E isso ajudou decisivamente a mudar o rumo dos acontecimentos em Portugal.
MONTENEGRO: FIGURA DO ANO
- Luís Montenegro é claramente uma das duas grandes figuras do ano. Partiu de baixas expectativas e chegou a PM. Tem o governo mais minoritário de sempre, mas tem o poder assegurado, pelo menos, até 2026. Fez o PSD regressar ao poder e é hoje o político mais influente em Portugal.
- No ano de 2024 quase tudo correu bem a Luís Montenegro. Mas é em 2025 que se perspetiva o seu grande teste político. Tem três desafios essenciais pela frente:
- Primeiro, governar ao centro para não perder o centro político. É ao centro que se ganham eleições. Luís Montenegro tem aqui uma vantagem: há muitos anos que o PS não tinha um líder tão à esquerda. Isso dá-lhe oportunidade de ser o grande referencial da moderação e do equilíbrio. Como mostrou na mensagem de Natal.
- Segundo, governar com uma agenda de mudança. A agenda inicial do Governo esgotou-se. É preciso uma nova agenda governativa, dinâmica e transformadora. E centrada sobretudo na economia. Como o PM disse no DN de hoje: investimento, investimento. É que em 2025 Portugal vai ter um recorde de investimento com fundos da UE: cerca de 10 mil milhões de euros. Algo nunca visto.
- Terceiro, vencer as eleições autárquicas. Ou, pelo menos, melhorar substancialmente os resultados anteriores do PSD. Não é uma tarefa fácil, até porque o PS vai beneficiar da erosão do PCP. Mas também não é impossível. As duas grandes prioridades passam por Lisboa e Porto. Nestas duas cidades vai decidir-se quem ganha e quem perde politicamente as autárquicas.
COSTA: UM PORTUGUÊS EM ALTA NA UE
- António Costa é a outra figura do ano em Portugal. É raro um português chegar a um alto cargo europeu. Sucedeu com Durão Barroso, em 2004. Repete-se agora com António Costa. Os cargos têm natureza e importância diferentes. Mas, para o reforço da imagem em Portugal, o impacto político é similar.
- O ex-Primeiro Ministro tem grande capacidade de diálogo e inegáveis qualidades para fazer pontos de entendimento. Mas vai ter, pelo menos, dois desafios de peso no próximo ano:
- Primeiro, o desafio da unidade e da coesão na União Europeia. Não é um desafio fácil. A UE já está hoje minada por várias divisões. Mas corre o risco de ter ainda mais clivagens no futuro. Em relação à Ucrânia, ao populismo, às migrações e ao financiamento de maior crescimento económico.
- Segundo, o desafio do reformismo. Há anos que a UE perdeu impacto reformista. Mas, se não quiser fracassar ou implodir, vai ter que o recuperar. Sobretudo nas áreas da economia e da segurança. Sem mais crescimento económico, a UE tornar-se-á cada vez menos competitiva. Sem segurança eficazmente garantida, tornar-se-á fortemente vulnerável. Ou seja, sem ambição reformista, a Europa dificilmente tem o futuro que os europeus desejam.
FACTOS NEGATIVOS E POSITIVOS DE 2024
- Num ano de mudanças, há factos negativos e positivos que não são despiciendos. Pela negativa:
- O caso das gémeas luso-brasileiras. Desgastou as instituições e minou a confiança dos cidadãos na política e nos políticos.
- A greve do INEM que, de forma direta ou indireta, conduziu a várias vítimas mortais. O Estado falhou onde não devia ter falhado.
- A morte de Odair Moniz, no Bairro do Zambujal, seguida de violência. Não foi uma boa imagem do país. Em segurança e inclusão social.
- A fuga de reclusos de Vale dos Judeus. Um facto lamentável. Única atenuante: três dos foragidos já foram recuperados.
- Os fogos florestais. Um pesadelo que regressa ciclicamente.
- Pela positiva, destaco cinco factos e acontecimentos:
- A ideia de contas certas. Com mais um excedente seguro em 2024 e um provável excedente em 2025. Quando, um dia, Portugal voltar aos défices, o choque político vai ser grande no país.
- A economia nacional cresce três vezes mais que a média da UE. Claro que temos de ambicionar mais. Desde logo, um crescimento ao nível dos Países de Leste. Mas, no estado em que a economia da UE está, trata-se de uma boa notícia.
- A crise da inflação que está praticamente encerrada. Terminou um pesadelo. Abre-se agora um novo ciclo de esperança.
- A resolução das querelas antigas com professores, polícias e militares. Acabou, assim, um ciclo de desmotivação e degradação em três setores profissionais do Estado Democrático.
- O avanço no PRR. Atingiu em 2024 os 40% de taxa de execução com que o governo se comprometeu. Em abril, estava nos 20%.
A NOVELA DO ANO
- A discussão, negociação e aprovação do Orçamento de Estado foi uma verdadeira novela. Uma novela que se arrastou durante meses e que quase cansou o país. Uma novela que teve três grandes protagonistas:
- O Presidente da República, que tudo fez para que o Orçamento fosse viabilizado. O Conselho de Estado que Marcelo Rebelo de Sousa promoveu em setembro pode ter tido uma influência decisiva na aprovação do documento.
- O Primeiro Ministro, Luís Montenegro. Exibiu um grande espírito de abertura, de diálogo e de negociação. "Levou a carta a Garcia".
- O líder da oposição, Pedro Nuno Santos. Ao viabilizar o Orçamento, o líder do PS marcou pontos, mostrou sentido de Estado e reforçou a sua credibilidade para desafios futuros.
- Importa realçar a lição mais importante a retirar deste processo: esta negociação é o grande exemplo do que vai inevitavelmente acontecer no futuro. Com um Parlamento fortemente fragmentado, a vida política nacional carece, cada vez mais, de diálogo, de capacidade para fazer pontes e de pedagogia política. A contratualização política não é um exercício de fraqueza ou frouxidão. É uma ideia democrática de grande nobreza ética e política. Trata-se de reforçar o primado do interesse nacional, a mais-valia da estabilidade e as condições da governabilidade do país.
A FIGURA INTERNACIONAL DO ANO
- Donald Trump é, sem dúvida, a figura internacional de 2024. Ganhou há oito anos; perdeu há quatro; e ganhou agora. Mais importante: "ressuscitou" politicamente do ataque ao Capitólio. O que para muitos parecia impensável.
- Nada no mundo, na Europa e nos EUA vai ficar igual com a sua nova liderança. Há, sobretudo, três desafios fundamentais:
- Primeiro, a guerra na Ucrânia. Um acordo de paz é praticamente impossível no curto prazo. Mas não é de excluir que Trump tente um cessar-fogo imediato. Falta saber em que condições. Se a Rússia continuar a ocupar os territórios de que ilegitimamente se apropriou, isso pode levar a sérias divisões na UE.
- Segundo, o futuro da NATO. A organização não vai acabar. Mas o seu funcionamento vai ser diferente. Os europeus vão ter que abrir seriamente os cordões à bolsa. E isso vai suscitar sérias divisões nas opiniões públicas europeias.
- Terceiro, o regresso do protecionismo. Este pode ser o maior desafio de todos. Para Trump, tudo é negócio. Tudo se resume a comprar e vender. Os princípios e valores são relegados para segundo plano. O que tudo pode conduzir a novas guerras frias comerciais. O que é mau para todos. Especialmente para uma Europa economicamente anémica e com défice de competitividade.