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11 de Maio de 2016 às 00:01

A democracia das trincheiras

Quando vemos a crispação e o divisionismo brutal em que até os países mais avançados hoje vivem, percebemos que a democracia sofre uma crise preocupante.

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Quem quiser compreender a política nas democracias ocidentais de 2016 pode começar por assistir a um documentário de 2015 sobre algo que aconteceu nos Estados Unidos em 1968, um ano de motins raciais, confrontos na rua sobre a guerra no Vietname e assassínios célebres e traumáticos (Martin Luther King, Jr. e Robert F. Kennedy). Foi nesse cenário tumultuoso que decorreu a 46.ª eleição presidencial, disputada entre Richard Nixon, candidato dos republicanos, e Hubert Humphrey, pelos democratas. Alguns meses antes, ambos os partidos haviam-se reunido nas respectivas convenções, já na altura eventos bastante mediatizados. As duas principais emissoras nacionais de televisão - NBC e CBS - fizeram o habitual: a transmissão permanente dos trabalhos, ancorada numa apresentação discreta. A ABC, eternamente cativa no terceiro lugar das audiências, optou por uma fórmula nova. Em vez de se limitar a mostrar o que se passava, seguiu a via da interpretação e da provocação. Para isso convidou o jornalista William F. Buckley, Jr., o extravagante líder intelectual do conservadorismo ressurgente, e o escritor Gore Vidal, símbolo cintilante da esquerda libertária. Buckley e Vidal teriam dez debates para entreter o público. "Best of Enemies" conta a história desses encontros lendários.

 

Para quem gosta da discussão política e intelectual, os duelos Buckley-Vidal parecem o auge da civilização. São desempenhos de inteligência fulgurante, raciocínio supersónico, toada implacável, expressão afiada e sarcasmo arrebatador. Buckley e Vidal nutriam um ódio mútuo mas, dentro dos limites daquele momento preciso e irrepetível, esse despeito foi extraordinariamente criador. A espaços é possível duvidar se tudo não foi mesmo encenado, talvez por um Aaron Sorkin "avant la lettre".

 

Sabe-se onde tudo culminou: Vidal chamou Buckley de "cripto-nazi" e este respondeu com "maricas". Em directo na TV. A experiência deixou marcas relevantes nas vidas de ambas as personagens. Porém, nenhuma tão profunda como a que deixou nos hábitos das democracias ocidentais. Aquilo que os debates mostraram é que uma parte essencial da discussão democrática é pura e simples guerra cultural. Buckley e Vidal sabiam disso e não estavam ali para convencer ninguém: ambos representavam mundos de valores inconciliáveis e o que desejavam era apenas apresentar à sua claque o escalpe do adversário, num exercício de vaidade esteticamente insuperável - e politicamente estéril.

 

Como "entretenimento informativo", os debates foram um produto televisivo seminal, que mais não parou de ser imitado, primeiro nos Estados Unidos, depois pelo mundo fora. O problema é que, à medida que a televisão se foi transformando no dínamo fundamental das sociedades modernas, a própria democracia passou a decorrer nos termos em que a televisão se produz (por vezes em misturas de planos inadmissíveis, como no exemplo da Fox News). "Best of Enemies" acaba assim por ser também um lamento, pelo péssimo agoiro em que aqueles brilhantes encontros se vieram a revelar.

 

Quando vemos a crispação e o divisionismo brutal em que até os países mais avançados hoje vivem, percebemos que a democracia sofre uma crise preocupante. Onde devíamos ter um processo de síntese de posições opostas, temos uma polarização radical. Onde devíamos ter conversação e convencimento, temos proselitismo, fanatização e mobilização agressiva de fiéis. Onde devíamos ter um chão comum temos apenas trincheiras, separadas por uma terra de ninguém, inóspita, devastada.

 

Advogado

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