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17 de Setembro de 2019 às 19:57

A falta de decência está mais democratizada do que se pensa

O Brexit está a testar os limites de todo o sistema democrático britânico, desde o Parlamento aos tribunais, passando pelos media. Mas a imprensa de esquerda, essa, parece que já queimou todos os fusíveis.

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1. David Cameron teve um filho com uma doença rara e incurável. Em 2009, com apenas 6 anos, Ivan morreu. Nas suas memórias, lançadas esta semana, o ex-PM britânico fala da "tortura emocional" que sentiu. Em resposta, o Guardian (repito: o Guardian) escreveu num editorial (repito: num editorial) que aquilo que Cameron sentiu foi antes "privileged pain" ("dor privilegiada" ou "dor de pessoa privilegiada"), porque teve acesso às "partes mais funcionais e mais bem financiadas" do SNS britânico. Isto no mesmo parágrafo em que se refere a sua educação - lá está - privilegiada.

O que o Guardian quis dizer é que o dinheiro é um bálsamo que alivia a dor, incluindo a dor de perder um filho, e que "os ricos" - com excepção, imagino, dos ricos de esquerda que leem o Guardian - são uma versão inferior da nossa espécie, que não partilha as mesmas emoções dos restantes seres humanos.

Pressionado pela polémica, o jornal alterou o texto e pediu desculpa. Mas o mal está feito.

Em Junho, o Guardian já se tinha comportado contra os seus apregoados padrões quando fez uma notícia sobre a vida privada de Boris Johnson e da namorada sem conseguir demonstrar o mais ténue interesse público daquilo que noticiava (escrevi aqui sobre o assunto - "Boris Johnson e a colectivização da vida privada", 26.06.2019).

Um pouco antes, outra publicação histórica da esquerda britânica, a New Statesman, adulterou grosseiramente o conteúdo de uma entrevista ao filósofo conservador Roger Scruton, para o pintar como um racista e xenófobo. Scruton exigiu a publicação do registo áudio da conversa e a revista acabou por não ter outra hipótese que não a de repor a verdade e pedir desculpa.

O Brexit está a testar os limites de todo o sistema democrático britânico, desde o Parlamento aos tribunais, passando pelos media. Mas a imprensa de esquerda, essa, parece que já queimou todos os fusíveis. Ou então está só a revelar aquilo que realmente é, com toda a sua desonestidade e arrogância, e a confessar que para si os adversários não devem estar abrangidos pelas regras mais elementares da "imprensa de referência". Que legitimidade tem esta gente para exigir que os políticos se comportem com apego à decência e à verdade? Nenhuma.

 

2. Boris Johnson foi ao Luxemburgo almoçar com Juncker e encontrar-se depois com o seu homólogo do Grão-Ducado, Xavier Bettel. Boris foi recebido por uma pequena multidão de megafone em riste, que lhe quis mostrar que não é amado naquelas bandas.

Até aqui, tudo normal. Acontece que Bettel tinha organizado uma conferência de imprensa fora do edifício onde os dois se haviam reunido, a cerca de dez metros do protesto. Pelas reportagens na TV percebe-se que aquela conferência de imprensa, com Boris Johnson, seria impossível (porque seria evidentemente boicotada pelo ruído dos protestos).

A comitiva britânica pediu que a conferência passasse para dentro do edifício. Bettel recusou. Boris foi-se embora e lá ficou o luxemburguês, sozinho, a esbracejar para um púlpito vazio e a dar o raspanete sobre o Brexit que tinha preparado dar na presença do convidado, num tom totalmente afastado dos padrões diplomáticos normais, mas sob o aplauso e o gáudio vocal dos manifestantes.

Bettel aproveitou a oportunidade irrepetível de ter ali no seu pequeno reduto a imprensa internacional para tentar garantir a sua notinha de rodapé na História. Por isso montou um número que é impossível não ver como uma armadilha para Boris Johnson.

Mas foi uma armadilha tão indecente, tão absurda, tão inaudita nas relações internacionais, que em comparação até o próprio Boris pareceu por um dia aquilo que não é - um exemplo de sobriedade e rigor diplomático.

Além disso, se a ideia de Boris Johnson é ir para eleições com a narrativa de que os britânicos são um povo acossado por um conluio dos deputados de Westminster com os líderes europeus, para anular a vontade popular e humilhar o Reino Unido, então esta foi a ilustração perfeita.

O número de Bettel diz muito sobre como a imagem do Reino Unido no mundo anda pelas ruas da amargura. Ainda assim, se me dissessem que tudo isto foi pensado pelos estrategos de Downing Street, com o estouvado Dominic Cummings à cabeça, eu acreditaria.

 

 Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico 

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