Opinião
[745.] BMW
A campanha do modelo X2 de BMW pede ao observador que se veja finalmente como vítima da ditadura do trabalho, vivendo entre muros, formatado como os outros, que rompa violentamente com a mesmice - e com os velhos como eu.
O moço tem um telemóvel… (os outros, ali, não têm…) Às 08h04 de sexta-feira, 26 de Agosto, ele recebe, lá no cubículo dele no labiríntico local de trabalho, uma SMS que lhe diz para sair daquela vida igual à dos outros (tem de trabalhar!) e em que é igual aos outros (tem de trabalhar!). Vale-lhe o telemóvel: outra SMS! Com o mapa do tesouro! Faz 2 km até à "Liberation Street"! Lá vai o moço. Escapa por uma porta felizmente chamada X-CAPE e, caramba!, anda a pé!, 2 km!, e chega ao tesouro!, e o tesouro é um BMW X2 dourado!
O moço, que é sósia de todos os outros, já saiu da mesmice, já tem o tesouro, só lhe falta a moça! No emprego-escravatura o relógio antigo (com números romanos, um horror) anda, lento. E ei-la, pobre moça, no seu cubículo! Ah!, também tem telemóvel e recebe um "live trip status" que a salvará. Do tecto da empresa-prisão desce um escadote dourado. Ela sobe, sai do trabalho subterrâneo, e, pumba!, chega o moço no X2! E era sexta-feira, em Agosto… Lá vão eles de férias… "Be the one who dares", diz o slogan, "sê aquele que ousa", traduzo eu.
Traduzo eu porque a BMW não, e encheu as ruas de Portugal com o inglês. Nem se via o carro. Só o slogan em inglês sobre um muro, num pastiche da capa de "The Wall", o LP de Pink Floyd (1979) - uma referência cultural com 40 anos, de velhadas como eu, num anúncio para moços de 20 ou 30… e num inglês que a maioria nem sequer perceberá em Portugal… O cartaz seguinte, já com o carro à frente do muro pinkfloydiano, como que traduzia aquele slogan por outra referência intertextual, esta cartesiana: "Arrisco, logo existo." Eu, já velho senil, preferiria "Arrisco, logo petisco", mas eles não podiam ter graça. O assunto é sério.
Noutro vídeo, a campanha grita, não contra a mesmice da miudagem, mas contra os velhadas. Neste segundo anúncio, o herói está preso em jogo de vídeo, ok?, em que toca uma música electrónica insuportável para quem já não tenha 20-30 anos. Ou 40, que é a idade do herói desta nova história, um escravo do trabalho que enriqueceu. Na sua empresa, também prisão, senta-se num trono dourado e copiado do da "Guerra dos Tronos"; pisa um chão de moedas de ouro; e ele usa uns dez colares dourados. Mas, a este meia-idade, de que serve o dinheiro se não "ousar" não sei quê?
"O que é ousado?", perguntam letras enormes no ecrã. "Sobe acima do status", pá, enquanto desces do trono cá abaixo à real. Ele atira os colares - a riqueza ganha com o trabalho escravo na empresa-prisão - para um chão de ouro líquido, qual líquido do "Terminator 2", de que nasce o tesouro, o BMW X2. Agora tem de se safar do trabalho escravo, onde todos são, somos, iguais. Zás!, com um taco de basebol o herói violentamente mata as estátuas dos seus sósias. "Sê único", dizem letras gordas sobre o acto violento. (Sê único, sê um dos muitos que compra este carro - sempre a mesmice publicitária…) Oh!, como no outro anúncio, falta a gaja! Então ele arranca uma flor dourada lá da empresa e no plano seguinte já a flor está no cabelo duma moça sentada ao lado dele no popó. Comprou-a com o seu ouro.
Começa o "videogame": um monstruoso insecto metálico, manipulado por um velhadas, tenta pisar o X2, que, maneirinho, lhe escapa no hangar vazio. O vilão está de fato e gravata e é meio cegueta, tem uma pala num olho, o velhadas! "Sê o caçador. Não o caçado", diz a mensagem espiritual e, lá está, o X2 caça o monstro do velhadas. Novo jogo. Agora há uma moça de corpo dourado (não é, hélas!, a garota de Ipanema) no meio de rapaziada dos tais 20-30 anos, e ela sai do meio deles. "Muda as regras": o carro atravessa um tabuleiro de xadrez gigante, onde estão presos os "outros". Outra moça, de ouro vestida, entra no X2, perante o olhar reprovador doutro velhadas, e zumba!, o tu a quem isto se destina "desbrava novo território", destrói com o carro as paredes todas da empresa-mesmice-prisão e um friso de televisores velhos representando o antigo e a mesmice, escapa às bolas assassinas do tempo, e diz "dislike" ao símbolo "like" do Facebook, que, pronto!, agora também é para velhadas.